Alguns dias, e nada mais, e Zelão fez a grande besteira de convidar o cunhado para me substituir, seria seu empregado, o irmão da mulher, algumas tragédias começam assim desse emaranhado familiar, é só estudar os Césares da velha Roma e você vai chegar nisso, dane-se, pensei, já não tinha mais nada a ver com aquilo, provavelmente nem voltaria a vê-los, era investimento do Bigode, coisa de anos, mas dane-se. Quarta-feira, feijoada, quinta-feira, macarrão com frango, sexta, peixe e, sábado, chegou, e Carla passou e passamos para o dia do adeus, tudo tão veloz, e ganhamos a estrada para encontrar Vânia.
- O que ela vai fazer lá fora?
- Estudar.
- Você não está me levando para conhecer uma burguesinha mimada, né?
- Claro que não, ela pode até ser uma burguesinha, mas mimada não é, pode acreditar.
- Tá certo, e a Carmela?
- Apareceu e confirmou o convite para eu ir morar com ela, coisa que nem me lembrava, decidi aceitar e daqui a uns quinze dias me despeço dessa cidade chumbo.
- A Carol comentou sobre o convite, ela e Carmela são amigas, Carol acha ótimo que Carmela se agarre num sujeito como você.
- Sujeito indefinido, não é mesmo?
- Oculto, meu caro, sujeito oculto.
Não demorou e chegamos. Risos vinham de dentro da casa e fomos ao encontro deles, antes, porém, Vânia nos achou e achei a pequena bela e brilhantes seus olhos, tivesse alguns tragos na cabeça e teria lhe tascado um beijo, mas ela trazia a tiracolo aquele papagaio de pirata de nome Gouveia que, portando uma grande felicidade tosca de corno dos infernos, nos encheu de elogios caminhando para a área externa onde a coisa toda estava rolando.
- As bebidas estão ali, tem umas coisinhas para beliscar na mesa ao lado, a banda de um amigo vai tocar daqui a pouco, bom que você veio, em duas horas serviremos o almoço. - disse ele, por fim, e foi puxar o saco de alguém.
- Acho que chegamos cedo.
- Fique tranquila, vamos beber alguma coisa?
- Quanta formalidade, cê não achou?
- Não vamos nos preocupar com isso, cerveja ou vinho? - Carla tinha razão, a coisa estava formal demais, faltava o velho Gutiérrez, formalidade de bichonas francesas, e a Vânia, porra, preocupada com o almoço? Realmente estava mudada, de qualquer forma ainda era cedo, havia um dia todo para que aquele bota fora se transformasse numa despedida de verdade.
- Vinho. - respondeu Carla.
- Meu filho, você sumiu, está mais gordo e bonito. - disse a mãe da Vânia, me achando num canto.
- Me perdi na grande cidade, a senhora acredita?
- A Vânia me disse que te encontrou e o quanto a sua vida tinha mudado e os estudos e o livro. E essa formosa dama?
- Os projetos foram ficando de lado, descobri que nós, pobres, não podemos fazer muitos planos, brigamos no almoço pela janta e assim o livro está parado, de vez em quando escrevo qualquer coisa. E essa formosa dama se chama Carla.
- Muito prazer.
- O prazer é todo meu.
- A nossa vida também vai mudar, no meio da semana ela vai para Paris com o Gouveia e eu e o Caco ficaremos aqui. - Caco, isso lá é nome de macho, pensei.
- Também vou embora, recebi uma proposta de trabalho para morar no interior, acho que lá conseguirei terminar o livro.
- Vocês estão namorando? - perguntou para Carla.
- Não, somos apenas bons amigos.
A velhota foi abraçar uma senhora que acabara de chegar e nos abandonou. Foi bom estar ao lado da Carla durante aquele dia, afinal, conversamos sobre uma infinidade de coisas, para ela filosofia é o dia a dia e foi com este comentário que Arthur e Adriana se aproximaram de nós.
- Desculpe, me chamo Adriana e este é o Arthur, tudo bem? - Carla e eu soltamos um oi e ela prosseguiu:
- Ontem assistimos a um filme que vai bem nessa linha do que vocês estão falando, filosofia cotidiana, poesia no caminhar.
- Qual é o nome do filme? - interrompeu Carla.
- O sacrifício, do Tarkovski. Na verdade, não esperávamos grande coisa além de um programa cabeça, aquele tipo de filme que nos leva a filosofar tolices, mas é uma obra-prima, pode acreditar.
- Tolice. - resmungou um cara ao lado sem se apresentar.
- Como? - disse Carla.
- Como vocês podem falar dessas coisas diante de uma eleição onde um grande canalha acaba de ser eleito?
- E daí? - replicou outro fulano ao lado e seguiu dizendo:
- O fato de terem eleito um canalha não nos torna diferentes, não pertencemos ao todo? Que porra de democracia é essa?
- Pertencemos ao todo sim, mas não somos tolos e se elegeram um canalha não quer dizer que a gente tenha que se tornar medíocre como aqueles que votaram nele, somos diferentes, grande parte da população não tem a menor paciência de assistir a um filme como O sacrifício, só assistem novelas e acreditam em tudo que a televisão diz, acho que temos que nivelar por cima. - falou Adriana e eu fiquei viajando, pensando que aquilo tudo não passava de trufas e trufôs, quanta baboseira, papos de balaios fumados.
- A filosofia abarca tudo e a poesia desse momento inunda minha vida inteira.
- Deixa de ser brega, Arthur! - disse Adriana demonstrando certa contrariedade com o rumo que a discussão tinha tomado, ela estava disposta a falar de filosofia, queria tornar didático aquele tema tão impregnado de medo ou incompreensão, puxou da bolsa um balaio e acendeu, os dois fulanos se aproximaram comentando que, agora sim, a discussão iria acender. Puxou fundo a bagaça, estendeu para Arthur que recusou. Carla nem se ligou no ambiente e tragou forte, o cheiro foi tomando conta do espaço, os dois fulanos se fartaram numa divisão desigual, sobrou uma ponta que veio parar em minhas mãos, puxei o que sobrou e mastiguei o resto, todos se espantaram e seguimos para a mesa de salgados, em silêncio, aquilo sim é que era filosofia no caminhar.
- O de sempre, forasteiro?
- Tudo bem, Cubano? Pode ser aquela de sempre.
- A moça canta que é uma beleza, tem uma mesa mais perto do palco.
- Valeu, mas vou ficar por aqui, tô querendo sossego.
- Tá certo. Eu falei com a Regina da Gazeta sobre o teu livro e ela quer falar com você, marcou para sexta às sete, aqui, tudo bem?
- Que bela surpresa, sem problema. - tem um bom tempo que ele me prometeu pôr em contato com essa figura, parece que ela precisa de alguém para escrever crônica no jornal e o Cubano comentou a meu respeito e ela se interessou, se pintar vai ser bem bacana.
Carla curtiu o sábado do bota fora, pegou endereço e telefone deles para uma festa no futuro, tipo de coisa que raramente acontece, eram pessoas com as quais não voltaríamos e não voltamos a ter contato, como gente de fila de banco. Antes da partida, Adriana acendeu outro balaio, os caras dividiram de forma desigual, Arthur aceitou, Carla recusou, eu fumei numa boa e a sobra desta vez atirei dentro do copo do Gouveia.
Vânia estava sentada na rede, quando me aproximei devagar, colocando sobre o seu colo uma flor roubada da decoração da mesa.
- Então, acabou, vai viajar com aquele pança de mamute? - disse para ela.
- Não tem ninguém aqui que você conheceu no sarau, gente estranha essa com a qual vivo, queria beber, me divertir e não apareceu nenhum daqueles filhos da puta, nem do partido, nem da faculdade e essa banda que o Gouveia arrumou, que grande lixo, só falta tocar Ray Conniff, pega aquela garrafa de vinho ali e vamos beber. - atendi o seu pedido, mas roubei duas garrafas que estavam pela metade.
- Não se chateie com esses imbecis, os caras do partido devem estar juntando, entre tapas, os motivos da derrota, a turma da faculdade deve estar numa tremenda fossa também, é preciso dar tempo ao tempo, você não tá indo embora, covarde talvez seja você, cadê a resistência? - ela dispensou a taça e começou a beber o vinho na própria garrafa.
- Cala essa boca, você não sabe de nada, você não passa de um pobre coitado, você não tem a mínima ideia do que é a política, só pelo fato de estar aqui entre nós não quer dizer que você pertença a este lugar, você só leu algumas páginas e isso não quer dizer nada, você não vale nada, sabia?
- Por isso que vocês não ganharam a eleição, para vocês o povo não pensa e não pode compartilhar do mesmo ambiente que vocês, hipócritas é o que vocês são, foda não é não ser nada, foda é se imaginar ser alguma coisa e ter que sair fora para não conviver com a derrota, quer saber? Vai se foder! - num trago mandei goela abaixo aquele tinto horroroso.
- Pensei em te ensinar um monte de coisas, ainda bem que você sumiu, só agora posso perceber o quanto você é tosco e limitado, fico imaginando o lixo que deve estar escrevendo, que vocabulário você tem para escrever um romance? Você não tem capacidade para isso. - de repente, abriu seu coração derrotado e só, bebeu em silêncio o seu vinho, também bebi o meu, olhei para Carla conversando com Adriana, Rufino e Nelson sentados numa cadeira de balanço, as pessoas todas ali distantes dela, os seus semelhantes ressentidos.
- Pelo menos a comida estava boa, a bebida meia boca, mas deu para o gasto, seja feliz. – levantei e, tranqüilo, fui ao encontro de Carla, não tinha alimentado nenhuma ilusão sobre a minha condição no mundo ou naquele ambiente, senti o quanto foi bom não ter tido ambição ao longo da vida, nada de gerar grandes expectativas, talvez as únicas expectativas que tive diziam respeito a ter ido à sua casa e também ao tal bota fora.
- Vamos, isso aqui já deu o que tinha que dar. - Carla e eu beijamos Adriana que esperava Arthur beber a enésima dose de tequila e saímos tontos de bebida e fumaça. A noite surgia silenciosa acompanhada por um último raio de sol que se colocava lá no fundão do cenário. Ridículo e estúpido, mas me sentia livre, sem rancor, algumas economias no banco, eu era um corpo sem grandes ilusões voltando para casa.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, Carla, não aconteceu nada, acho que ela vai ser feliz na França. - Carla acendeu um cigarro, colocou qualquer coisa para tocar e ganhamos a estrada.
Humm, luta de classes é um componente novo, a essa altura! Expandiu a zona de conflito, gostei.
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