segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 16

Após alguns dias sem fazer nada, saindo pouco de casa, fui até o Zelão receber o que me cabia, por lá bebi algumas biritas como cliente, olhando toda a situação ao redor, era a minha despedida daquele espaço, quer dizer, foi a minha despedida do lugar. Zelão parecia feliz, não permitiu que eu pagasse a conta e me deu um grande abraço quando me levantei para ir embora. A cidade começava a ter contornos de saudade e era preciso visitar algumas coisas antes de partir, coisas estas que nem se lembravam da minha existência. Assim, fui até a Mercedes beber uma vodka, uma das putas encheu meu saco para uma bimbada, mas resisti bravamente, só queria sentir o cheiro daquela pocilga e mais nada.
Quarta à noite, assento número 17, partiria para nunca mais voltar. Terça à noite passei para beijar Carla e Carol e para confessar que meu tesão era transar com as duas, acabei jantando por lá, quanto ao sexo, riram da minha cara. Quarta de manhã, passei pelo banco, saquei toda a grana, voltei para o cafofo para pegar meus trapos, a máquina de escrever e para beijar Dona Maria. Quarta à noite, assento 18, ela se sentou ao meu lado. Vinte e três horas, o ônibus deixou a rodoviária, as pessoas se despedindo e você sentado na poltrona da janela sem ter ninguém para dar adeus. E do passado, não podemos nos despedir? As luzes da cidade foram ficando pra trás e, em instantes, as estrelas podiam ser vistas no meio da escuridão e puxando a poltrona para trás você é o vazio conduzido pela tranquilidade.
Assento dezoito, corredor, chocolate na boca para animar a viagem, fone no ouvido, cobertor sobre o corpo, sono. Ao lado, não conseguia pregar o olho, enquanto me despregava pela primeira vez de minha terra. Peguei as folhas que havia escrito ao longo dos últimos anos e comecei a ler, buscando erros, tentando complementar alguma coisa com a velha pena em punho. Cinco horas dentro daquele ônibus, uma parada, um café, dois cigarros, um sanduíche bauru, um refrigerante, cinco horas, tempo suficiente para ler aquele calhamaço. Deixei as folhas de lado e só pensava na carne de Carmela, em seus lábios quentes, em sua falta de coragem em assumir que não devia nada para aquela gente da cidade de seus pais, nada de expectativas, o lance seria viver o dia a dia.
Algum tempo depois, paramos para um lanche e a moça ao meu lado nem despertou. “Quinze minutos”, gritou o condutor. Ela dormia enrolada numa bela manta, respiração serena e tranquila, boa de se ficar espiando. Fiz um movimento qualquer e ela acordou. Desenrolou-se e foi para fora. Também saí para lavar o rosto, fumar um cigarro e beber um café. Parada vulgar e cara, desisti do sanduíche e fiquei na coxinha, puxei dois cafés, fumei três cigarros, sobraram cinco minutos para uma bala de hortelã e um copo com água.
Quando o condutor acionou o motor, entrei no coletivo, em três horas chegaria ao meu destino. A moça da poltrona 18 já estava lá. “E aí, tudo bem, como vai e a família e as crianças?” - pensei em dizer, não disse nada, apenas me sentei, puxei os papéis da bolsa, “tese sobre o quê?” - disse ela.
- Na verdade é um romance, estou escrevendo faz tempo e não consigo chegar ao final.
- E fala sobre o quê?
- Uma mulher fatal que atravessa a vida de um monte de gente, sacaneia um, apaixona-se por outro e não fica com ninguém.
- Deve ter muito sangue, se é uma mulher a estrela principal.
- O problema está justamente nisso, eu já matei uns dez personagens.
- Vai para onde, afinal?
- Me chamo Dilermando, estou indo para Poções, e você?
- Paloma, fico uma cidade antes de você, o que vai fazer naquela cidade? Ali não tem nada para fazer. Bom, se vai para lá para escrever é o lugar certo.
- Vou trabalhar numa pensão que fica por lá, a proprietária me contratou, chama-se Carmela.
- Bacana, se você tem onde ficar e um trabalho, tá tudo bem. - falou isso, puxou o cobertor, acomodou o banco e tchau, entrou no sono.
Fiquei ali parado sem entender, mas tudo bem, o que se há de fazer, não é mesmo? Retomei a leitura, anotei algumas coisas e não achava nada do que Vânia tinha dito. De repente, a coisa não estava lá, grande coisa mesmo, só que era o meu primeiro trabalho, não sou nenhum Rimbaud. Cochilei e só acordei com o sacolejar do ônibus chegando na rodoviária, Paloma já tinha zarpado e eu nem tinha visto. Não foi necessário pegar um táxi, pelas informações, caminhando com calma, chegaria ao meu destino. Cheguei na pensão que me parecia bem acolhedora, toquei a campainha e Carmela veio me receber.
- Já estava preocupada.
- Você não me falou quinze dias? - talvez tenha sido até rude.      
- Comecei a achar uma eternidade. - levou-me até o meu quarto com banheiro, uma cama enorme, fechou a porta com cuidado e me deu um grande beijo, puxa vida, eu era feliz e não sabia. Não quis descansar e, assim, fui para o café conhecer quem ainda estava pelo lugar, ela me explicou o que eu deveria fazer, meus dias e horários de folga, salário e eu só queria deitar com ela, mais nada.
Dois dias e no sábado estaríamos livres para um passeio, para o namoro e essas coisas todas. Naquela mesma noite saí para conhecer a cidade e acabei bebendo no Guzula e terminando a noite no bar dos estudantes, voltei me arrastando e ela me falou “não se esqueça que o batente começa às cinco”. Em pouco tempo me adaptei ao trabalho, de tarde puxava algumas folhas e ia para a máquina escrever; criei uma rotina de trabalho que enchia Carmela de orgulho, nos finais de semana pulava para a sua cama ou, quando ela estava em brasas, invadia o meu espaço e assim começamos a viver nosso estranho matrimônio.
No fin fon fin dos dias o tempo foi ficando rotineiro e chato, perdi a disciplina e a inspiração começou a chegar só de noite, lá pelo décimo tec, tec já escutava um toc, toc na porta, passei a sair todas as noites para escrever, ou no Guzula ou no bar dos estudantes, claro que não conseguia escrever em nenhum dos dois lugares e, assim, aos sábados, quando ela não estava em brasas e não ia para o meu quarto, eu aproveitava para pôr as coisas em ordem e ficava escrevendo quase o dia inteiro, até que finalmente cheguei ao último capítulo, porra, faltavam apenas algumas linhas para finalmente dar cabo daquelas folhas.
A coisa estava estranha entre nós, ainda havia amor para se gastar, foi o que pensei quando abri a janela tocando aquele sábado perfeito para permanecer enrolado no cobertor. Passei quase toda a manhã lendo coisas que havia guardado e que não conseguiria colocar no livro. O clima não era propício nem mesmo pra mexer com a máquina de escrever, por isso deixei-a quieta, mergulhada em seus pensamentos e desci para ver se tinha um café quente na cozinha. Fazia um silêncio um tanto constrangedor, ela não me procurava fazia um bom tempo e eu também. Desci o pequeno lance da escada e, quando passei pela sala, encontrei-a lendo Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu ao som de Chocolate Genius, interpretando Julia de Lennon e McCartney. Sentei no braço da poltrona e fiquei ouvindo aquele refrão que atravessava a cidade molhando-se na garoa fria das ruas. Percebi que eu também estava frio, que não estava retribuindo o que ela tinha feito por mim ao me convidar para vir morar com ela, que eu no fundo era um sujeito insensível.
- Bonito, não? - ela disse.
- Todo o conjunto que vejo é belo.
- Como assim?
- Você lendo absorta, esta música, o clima bom para não se fazer nada. Sei lá, parece que, de repente, estamos em paz.
- Acordei cedo por hábito e resolvi reler este livro. Você conhece?
- Só li O ovo apunhalado.
- É bom?
- É bacana, mas gostava mais das coisas que ele escrevia no jornal.
- Fiquei chateada quando ele morreu.
- Eu também fiquei.
- Não vai escrever nada hoje, aproveitar que não tem ninguém para me fazer bater na tua porta?
- Parece que a inspiração escolhe momentos impróprios para aparecer. Às vezes estava no meio do trabalho e pintava alguma ideia. É quase sempre assim.
- Ou é o lugar que não inspira mais?
- Pelo contrário, gosto deste lugar, das pessoas e do jeito que falam.
- E eu, como fico nessa história, viramos um casal, beijinho de boa noite e bom dia?
- Quando abri a janela, agora há pouco, pensei nisso, desculpe, acho que tenho sido frio demais com você. Ela se levantou trocando o disco por outro do Plácido Domingo e foi buscar um café para nós. Enquanto o tenor soltava aquele vozeirão, chafurdado na poltrona, pensava sobre esse tal amor que era algo que jamais tive e que, de repente, estava ali se oferecendo para mim, chance única, talvez uma espécie de duplo seis num lance de dados. Por todo o sábado conversamos e ouvimos música, era como se tivéssemos nos reencontrado após um longo período distante. De noite, preparei um espaguete para jantarmos e entre cervejas e cachaças deixei o meu livro para ela ler, sem pressa, afinal, só faltava um capítulo mesmo.
- Você vai me confiar a tua obra?
- Não deveria? - respondi e começamos a rir feito dois jovens sem compromisso com o futuro e pintou um beijo e depois outro e ela colocou Terra, do Sá, Rodrix e Guarabira e eu adormeci no sofá.
A manhã de domingo raiou ensolarada. Caminhei sentindo uma tremenda dor de cabeça. Pela casa não havia vestígio da noite anterior, tudo arrumado e até a cozinha estava limpa. Fui para o meu quarto e sem me preocupar com o horário puxei a máquina e mandei ver, se a transa não pintou, se dancei na curva indo para fora da pista, pelo menos a inspiração veio me visitar sendo interrompida por um toc, toc na minha porta e, sem o som do pode entrar, a porta se abriu e, pela primeira vez nos últimos meses, Carmela veio me visitar brasa acesa para pôr fogo no meu domingo e na minha vida. Ela estava no melhor dia desde que nos conhecemos, desde que nos despimos, desde que trepamos pela primeira vez, ela estava se despindo de vergonhas e aparências e fez tudo como nunca e gemeu e gritou e fomos e fomos e fomos até sermos apenas dois corpos repletos de suor e satisfação e paz e cansaço e tesão de começar tudo de novo.
- Adorei o livro.
- Puxa, só isso, o escritor, mesmo maltrapilho como eu, sempre espera uma crítica mais contundente.
- O que posso dizer se é bom, se cada personagem é algo que podemos tocar, ainda estou refletindo sobre isso, mas adorei a Analice.
- Ela é tudo o que você podia ser.
- Só fui dormir depois de ler tudo isso. Como pretende terminar essa história?
- Não sei, se você me permite quero começar uma outra.
- Ou recomeçar? - estávamos quase colados e não foi difícil roubar-lhe um beijo e algo novo começou a existir.
Ela não tinha motivos para esconder a nossa relação dos outros e, aos poucos, sem fazer alarde, todos passaram a ter certeza de algo que já desconfiavam, que estávamos namorando ou amasiados, seja qual denominação fosse. Na verdade, foi importante ter me distanciado para poder tentar terminar meu livro e para que ela entendesse que o que vale é tentar ser feliz. Porra, sexta é amanhã, tenho que me apressar para finalizar o último capítulo do livro.

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