segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - Final

O bar não tem tanta gente agora, a moça permanece cantando e a lua está linda no céu. Meus pés interessam-se por chegar rapidamente até a pensão. Minha cabeça só pensa em Analice, que é a irmã da moça mais linda da cidade. Analice não é feia, mas diante de Emiliana ela é quase um monstro. Emiliana está triste, percebe que o fim está próximo pelo menos foi o que disseram na igreja, Emiliana está à beira da loucura, começa a mutilar-se. Essa minha cabeça tem cada ideia, como, de repente, depois de usar e abusar de todos, ela enlouquece? Ela pode simplesmente pirar, afinal, o que ela queria era só ficar sugando todos os caras? Seu pai morreu não faz vinte páginas, as coisas passam a não ter sentido, era o pai que ela queria buscar, ela é apaixonada pelo pai, porra, eu sou um gênio, ela deu e matou gente por tesão pelo pai e Analice, a irmã virgem, se entrega nos braços de padre Walfrido, que era antigo amigo de escola dela e que decidiu assumir a batina depois que Emiliana o nomeou a “bicha louca do bairro” e, que final incrível, não posso me esquecer de nenhum detalhe.    
Quase uma da manhã e está tudo claro na pensão, tanto para eu redigir as minhas ideias quanto para não tropeçar em nenhum móvel pelo caminho. Cheiro bom na cozinha, um prato no forno, lasanha, quinta, dia de massa e o Zelão como estará? O lance na quinta era espaguete com frango ou bolonhesa ou carne assada, que delícia essa lasanha, dona Amélia é cozinheira de mão cheia, Carmela, às vezes, cozinha, só que Dona Amélia domina a área.
- Pedi para você passar no meu quarto e você sumiu.
- Desculpe, pensava que era por causa da máquina, meu, esse rango tá de prima.
- Não nos vimos o dia inteiro, e aí, tudo bem por aqui?
- Tudo. - parece que ela quer me dizer qualquer coisa, está diferente sei lá.
- Quase fui até o bar atrás de você.
- A Regina da Gazeta vai querer ver o livro e, finalmente, encontrei um jeito de terminar o último capítulo, o pai de Emiliana morreu e isso a deixou profundamente abalada, sem tesão, ela não quer saber de homem nenhum, está ficando louca, é isso, ela sempre foi apaixonada pelo pai, entende? Projetava nos outros a atração que ela tinha pelo velho.
- Não sei não, isso não tá parecendo novela?
- Caraca, você vai cortar o meu barato desse jeito, porra? Tava tão animado.
- O livro é teu, a história é tua e a Analice com a meia virgindade vai dar para o padre?
- Como é que você sabe?
- Ela não teve pensamentos eróticos com ele? Dá a entender que ela se masturbou.
- Então, eles sempre foram apaixonados, acontece que Emiliana o chantageou dizendo que contaria para todos que ele dava ré no kibe.
- Que maluquice é essa de ré no kibe?
- Que ele era viado, só para não permitir o namoro com a irmã.
- Sei não, aí ela vai para o hospício e, do nada, Analice dá para o padre que abandona a batina e a cidade fica sem padre, as velhinhas sem nada para fazer e todos vivem felizes para sempre? Que lixo!
- Essa lasanha tá muito boa, tá certo, amanhã eu penso uma outra coisa, de qualquer forma mostro para a Regina o que tenho e vamos ver no que dá. E aí, que tal um beijo?
- Faz tempo que você não me fala nada.
- Tipo o quê?
- Sei lá?
- Tô achando você bem estranha, o que quer que eu diga? Já cansei de dizer que te amo, que foi muito bom você assumir aqui dentro que somos marido e mulher, até já te pedi em casamento e você não aceitou, tem outro pedaço dando sopa por aí?
- Passa o prato, guloso.
- Não vai ser por um masturbaçãozinha que ela vai deixar de ser virgem, concorda?
- Concordo, tem com molho branco também.
- Coloca tudo aí que eu tenho direito, depois eu ponho tudo em você, tá afins?
- Não sei, vou ver.
- E aí, o que você queria me dizer?
- Você no fundo tem sido um anarquista, sabia? Viver por viver, sem ambição, acreditando em alguns sonhos, distante de discussões políticas, de certa forma aceitando migalhas, quando gozei, outro dia, senti você puro dentro de mim, senti o momento de transformação, coisa que só nós mulheres podemos sentir.
- Quer dizer que eu sou um Bakunin da vida? Se você fala em anarquismo as pessoas logo imaginam baderna, destruição, ninguém sabe nada sobre isso, aliás, quantas pessoas que você conhece já leram Guerra  e Paz ou A Desobediência Civil?
- É preciso ler a Bíblia para se sentir cristão? Não, acho que não, quantas pessoas ficam por aí rezando e, no final das contas, são egoístas e hipócritas? Você é apenas o homem que me transformou, que me fez refletir, sem nem perceber, sobre um monte de coisa, você não tem dimensão de tempo, o teu romance é lindo, é uma coisa simples, até pode ser, mas está além disso.
Dizem que chorar faz bem para os olhos, sorrir faz bem para o coração, bom é chorar de alegria, mas qualquer lágrima sempre me deixa confuso, percebi o marejar de seus olhos enquanto falava, por isso, decidi brincar diante da pequena tensão que se instalava entre nós.
- Chegaram os resultados dos meus exames? Sou paciente terminal? Quantos dias tenho de vida? Que ter um filho? Que lágrimas são essas?
- São lágrimas, apenas lágrimas.
- De felicidade ou tristeza? Quer que eu vá embora? O amor acabou? Posso trabalhar por mais alguns dias? Tá faltando tão pouco para eu terminar o livro, já levei em consideração tudo que você comentou sobre o final, o que está acontecendo?
 - Você saiu para tentar escrever, fiquei só, olhando a televisão que era apenas um mero aparelho luminoso, tanto que eu nem prestava atenção no que estava acontecendo, se israelenses e palestinos entraram em paz ou se uma bomba caiu em qualquer canto, simplesmente não ouvi, simplesmente não vi, fiquei pensando apenas em ver você, tocar teu rosto, dar um abraço, um beijo, em tirar a roupa e deixar você fazer tudo de bom comigo, mas você saiu e eu fiquei.
- Que papo maluco é esse? Desde quando você pensa em me acompanhar de noite, principalmente no meio de semana, você me acompanha amanhã para o encontro com a Regina e depois saímos por aí, sei lá, podemos fazer qualquer coisa, chega de lágrimas, por favor, se não eu também acabo chorando.
- Sabe pra onde eu fui hoje?
- Não tenho a menor ideia, pra onde?
- Me dê a sua mão, vamos até o meu quarto, quero te mostrar uma coisa.
- Tá certo, não vou mais sair sem perguntar se você quer ir comigo, tá bom? Esse papo de anarquista não tem nada a ver, hein?
- Cara, qual é o problema em fazer uma comparação entre a forma com que você encara a tua vida e o pensamento anarquista?
- Nenhuma, é que isso me deixa constrangido, já li muita coisa sobre esses fulanos e o que eles sofreram, eu não passei nem por um décimo disso.
- Só queria te elogiar, como eu disse você me fez repensar um monte de coisas, ali sobre a cama, pega para mim, por favor.
- Toma.
- Abre e lê.
- Caraca, você está grávida e aquele papo de filho jamais e a porra da idade?
- Não falei que você mudou os meus conceitos?
- Tô frito, como vou sustentar uma família?
- Trabalhando como sempre, além disso, agora este lugar também pertence a você.
- Não é o momento para pensarmos nisso, só quero te encher de beijos, chega de muito trabalho, hein? Eu vou assumir a bronca, um filho, quem diria?
- Tô pensando em chamar a Carol e a Carla para um fim de semana conosco, pode ser?
- Maravilha, papai, hein, quem diria?
- Sabe, uma coisa que Analice disse e que me encantou e que realmente é uma grande verdade?
- Sei lá, o quê?
- Num diálogo com Emiliana ela diz para a irmã que o futuro é uma grande possibilidade e isso me tocou profundamente, afinal, o nosso presente é uma grande possibilidade.
- E esse ser que você gera é a possibilidade de um futuro feliz, e felicidade sempre achei que é coisa de gente besta, e olha eu aqui besta em saber que serei papai.
- Preciso de uma chuveirada, vem dormir comigo, tô precisando do teu carinho.
- Claro, você sempre mandou e, agora, então, como posso recusar? Cê leva um puta tempo debaixo do chuveiro, vou até o meu quarto e já volto.
Estranha condição esta em que me acho e me perco em pensamentos tolos, entre o bambear de pernas e o frio na barriga, quantas transformações um simples pedaço de papel pode trazer. Sempre imaginei que o pequeno livro que venho escrevendo ao longo dos últimos anos seria a minha marca nesta terra, e será justamente uma criança o sinal de que caminhei por estas ruas, será esta criança a pessoa que poderei acolher e dar a ela o que sempre faltou ao longo de minha vida.
Não tranquei a porta do quarto, o papel está na máquina à minha espera, enquanto as águas dão ao corpo de Carmela um novo frescor, vou tentar concluir esse treco... TEC, TEC,TEC...     

domingo, 11 de setembro de 2011

Tempero do Zeca


Fechado o bar, fica dentro dele o rumor de nossas ideias, o som das músicas cantadas pela metade, um bar fechado é um ambiente repleto de lisonjeas. Seja um pé de porco ou um canto requintado, através dos bares compomos a nossa história, amizades não brotam em leiteria não é mesmo?  Não vamos tocar no tema, das violências atribuídas a estes estabelecimentos, acredito que os bares servem porções de felicidade.
Nesses últimos dias, tenho reencontrado velhos companheiros dos tempos de escola, dias carregados de certa nostalgia, até pensei em escrever sobre isso, essa coisa de rever gente, mas não conseguiria escrever uma linha, ficaria bem piegas, é bom deixar no passado como fotografias guardadas em um álbum, voltar a encontrar antigos sorrisos é como abrir esse álbum.
Diante de minha casa foi reaberto um velho bar, era ali quando criança que comprava o pão e o leite de todos os dias, de repente foi se tornado apenas um boteco, e à medida que fui crescendo, ele passou a ser útil do mesmo jeito, Sob nova direção foi a faixa colocada na fachada do velho bar, era estranho ver aquele lugar fechado, era o local onde comprávamos aquela gelada para ver o futebol, era ali que os amigos da rua se encontravam de vez em quando, no dia da reinauguração atravessei a rua como nos velhos tempos, sacola na mão com algumas garrafas, a velha sede da sexta feira, entrando no recinto um cheiro bom chegava da cozinha, tempero do Zeca alguém sussurrou como se me conhecesse e, para minha surpresa dentro daquele lugar estavam os velhos amigos do passado, foi como se atravessasse o túnel do tempo, foi como se a escola ainda fosse a nossa única razão de viver.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 16

Após alguns dias sem fazer nada, saindo pouco de casa, fui até o Zelão receber o que me cabia, por lá bebi algumas biritas como cliente, olhando toda a situação ao redor, era a minha despedida daquele espaço, quer dizer, foi a minha despedida do lugar. Zelão parecia feliz, não permitiu que eu pagasse a conta e me deu um grande abraço quando me levantei para ir embora. A cidade começava a ter contornos de saudade e era preciso visitar algumas coisas antes de partir, coisas estas que nem se lembravam da minha existência. Assim, fui até a Mercedes beber uma vodka, uma das putas encheu meu saco para uma bimbada, mas resisti bravamente, só queria sentir o cheiro daquela pocilga e mais nada.
Quarta à noite, assento número 17, partiria para nunca mais voltar. Terça à noite passei para beijar Carla e Carol e para confessar que meu tesão era transar com as duas, acabei jantando por lá, quanto ao sexo, riram da minha cara. Quarta de manhã, passei pelo banco, saquei toda a grana, voltei para o cafofo para pegar meus trapos, a máquina de escrever e para beijar Dona Maria. Quarta à noite, assento 18, ela se sentou ao meu lado. Vinte e três horas, o ônibus deixou a rodoviária, as pessoas se despedindo e você sentado na poltrona da janela sem ter ninguém para dar adeus. E do passado, não podemos nos despedir? As luzes da cidade foram ficando pra trás e, em instantes, as estrelas podiam ser vistas no meio da escuridão e puxando a poltrona para trás você é o vazio conduzido pela tranquilidade.
Assento dezoito, corredor, chocolate na boca para animar a viagem, fone no ouvido, cobertor sobre o corpo, sono. Ao lado, não conseguia pregar o olho, enquanto me despregava pela primeira vez de minha terra. Peguei as folhas que havia escrito ao longo dos últimos anos e comecei a ler, buscando erros, tentando complementar alguma coisa com a velha pena em punho. Cinco horas dentro daquele ônibus, uma parada, um café, dois cigarros, um sanduíche bauru, um refrigerante, cinco horas, tempo suficiente para ler aquele calhamaço. Deixei as folhas de lado e só pensava na carne de Carmela, em seus lábios quentes, em sua falta de coragem em assumir que não devia nada para aquela gente da cidade de seus pais, nada de expectativas, o lance seria viver o dia a dia.
Algum tempo depois, paramos para um lanche e a moça ao meu lado nem despertou. “Quinze minutos”, gritou o condutor. Ela dormia enrolada numa bela manta, respiração serena e tranquila, boa de se ficar espiando. Fiz um movimento qualquer e ela acordou. Desenrolou-se e foi para fora. Também saí para lavar o rosto, fumar um cigarro e beber um café. Parada vulgar e cara, desisti do sanduíche e fiquei na coxinha, puxei dois cafés, fumei três cigarros, sobraram cinco minutos para uma bala de hortelã e um copo com água.
Quando o condutor acionou o motor, entrei no coletivo, em três horas chegaria ao meu destino. A moça da poltrona 18 já estava lá. “E aí, tudo bem, como vai e a família e as crianças?” - pensei em dizer, não disse nada, apenas me sentei, puxei os papéis da bolsa, “tese sobre o quê?” - disse ela.
- Na verdade é um romance, estou escrevendo faz tempo e não consigo chegar ao final.
- E fala sobre o quê?
- Uma mulher fatal que atravessa a vida de um monte de gente, sacaneia um, apaixona-se por outro e não fica com ninguém.
- Deve ter muito sangue, se é uma mulher a estrela principal.
- O problema está justamente nisso, eu já matei uns dez personagens.
- Vai para onde, afinal?
- Me chamo Dilermando, estou indo para Poções, e você?
- Paloma, fico uma cidade antes de você, o que vai fazer naquela cidade? Ali não tem nada para fazer. Bom, se vai para lá para escrever é o lugar certo.
- Vou trabalhar numa pensão que fica por lá, a proprietária me contratou, chama-se Carmela.
- Bacana, se você tem onde ficar e um trabalho, tá tudo bem. - falou isso, puxou o cobertor, acomodou o banco e tchau, entrou no sono.
Fiquei ali parado sem entender, mas tudo bem, o que se há de fazer, não é mesmo? Retomei a leitura, anotei algumas coisas e não achava nada do que Vânia tinha dito. De repente, a coisa não estava lá, grande coisa mesmo, só que era o meu primeiro trabalho, não sou nenhum Rimbaud. Cochilei e só acordei com o sacolejar do ônibus chegando na rodoviária, Paloma já tinha zarpado e eu nem tinha visto. Não foi necessário pegar um táxi, pelas informações, caminhando com calma, chegaria ao meu destino. Cheguei na pensão que me parecia bem acolhedora, toquei a campainha e Carmela veio me receber.
- Já estava preocupada.
- Você não me falou quinze dias? - talvez tenha sido até rude.      
- Comecei a achar uma eternidade. - levou-me até o meu quarto com banheiro, uma cama enorme, fechou a porta com cuidado e me deu um grande beijo, puxa vida, eu era feliz e não sabia. Não quis descansar e, assim, fui para o café conhecer quem ainda estava pelo lugar, ela me explicou o que eu deveria fazer, meus dias e horários de folga, salário e eu só queria deitar com ela, mais nada.
Dois dias e no sábado estaríamos livres para um passeio, para o namoro e essas coisas todas. Naquela mesma noite saí para conhecer a cidade e acabei bebendo no Guzula e terminando a noite no bar dos estudantes, voltei me arrastando e ela me falou “não se esqueça que o batente começa às cinco”. Em pouco tempo me adaptei ao trabalho, de tarde puxava algumas folhas e ia para a máquina escrever; criei uma rotina de trabalho que enchia Carmela de orgulho, nos finais de semana pulava para a sua cama ou, quando ela estava em brasas, invadia o meu espaço e assim começamos a viver nosso estranho matrimônio.
No fin fon fin dos dias o tempo foi ficando rotineiro e chato, perdi a disciplina e a inspiração começou a chegar só de noite, lá pelo décimo tec, tec já escutava um toc, toc na porta, passei a sair todas as noites para escrever, ou no Guzula ou no bar dos estudantes, claro que não conseguia escrever em nenhum dos dois lugares e, assim, aos sábados, quando ela não estava em brasas e não ia para o meu quarto, eu aproveitava para pôr as coisas em ordem e ficava escrevendo quase o dia inteiro, até que finalmente cheguei ao último capítulo, porra, faltavam apenas algumas linhas para finalmente dar cabo daquelas folhas.
A coisa estava estranha entre nós, ainda havia amor para se gastar, foi o que pensei quando abri a janela tocando aquele sábado perfeito para permanecer enrolado no cobertor. Passei quase toda a manhã lendo coisas que havia guardado e que não conseguiria colocar no livro. O clima não era propício nem mesmo pra mexer com a máquina de escrever, por isso deixei-a quieta, mergulhada em seus pensamentos e desci para ver se tinha um café quente na cozinha. Fazia um silêncio um tanto constrangedor, ela não me procurava fazia um bom tempo e eu também. Desci o pequeno lance da escada e, quando passei pela sala, encontrei-a lendo Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu ao som de Chocolate Genius, interpretando Julia de Lennon e McCartney. Sentei no braço da poltrona e fiquei ouvindo aquele refrão que atravessava a cidade molhando-se na garoa fria das ruas. Percebi que eu também estava frio, que não estava retribuindo o que ela tinha feito por mim ao me convidar para vir morar com ela, que eu no fundo era um sujeito insensível.
- Bonito, não? - ela disse.
- Todo o conjunto que vejo é belo.
- Como assim?
- Você lendo absorta, esta música, o clima bom para não se fazer nada. Sei lá, parece que, de repente, estamos em paz.
- Acordei cedo por hábito e resolvi reler este livro. Você conhece?
- Só li O ovo apunhalado.
- É bom?
- É bacana, mas gostava mais das coisas que ele escrevia no jornal.
- Fiquei chateada quando ele morreu.
- Eu também fiquei.
- Não vai escrever nada hoje, aproveitar que não tem ninguém para me fazer bater na tua porta?
- Parece que a inspiração escolhe momentos impróprios para aparecer. Às vezes estava no meio do trabalho e pintava alguma ideia. É quase sempre assim.
- Ou é o lugar que não inspira mais?
- Pelo contrário, gosto deste lugar, das pessoas e do jeito que falam.
- E eu, como fico nessa história, viramos um casal, beijinho de boa noite e bom dia?
- Quando abri a janela, agora há pouco, pensei nisso, desculpe, acho que tenho sido frio demais com você. Ela se levantou trocando o disco por outro do Plácido Domingo e foi buscar um café para nós. Enquanto o tenor soltava aquele vozeirão, chafurdado na poltrona, pensava sobre esse tal amor que era algo que jamais tive e que, de repente, estava ali se oferecendo para mim, chance única, talvez uma espécie de duplo seis num lance de dados. Por todo o sábado conversamos e ouvimos música, era como se tivéssemos nos reencontrado após um longo período distante. De noite, preparei um espaguete para jantarmos e entre cervejas e cachaças deixei o meu livro para ela ler, sem pressa, afinal, só faltava um capítulo mesmo.
- Você vai me confiar a tua obra?
- Não deveria? - respondi e começamos a rir feito dois jovens sem compromisso com o futuro e pintou um beijo e depois outro e ela colocou Terra, do Sá, Rodrix e Guarabira e eu adormeci no sofá.
A manhã de domingo raiou ensolarada. Caminhei sentindo uma tremenda dor de cabeça. Pela casa não havia vestígio da noite anterior, tudo arrumado e até a cozinha estava limpa. Fui para o meu quarto e sem me preocupar com o horário puxei a máquina e mandei ver, se a transa não pintou, se dancei na curva indo para fora da pista, pelo menos a inspiração veio me visitar sendo interrompida por um toc, toc na minha porta e, sem o som do pode entrar, a porta se abriu e, pela primeira vez nos últimos meses, Carmela veio me visitar brasa acesa para pôr fogo no meu domingo e na minha vida. Ela estava no melhor dia desde que nos conhecemos, desde que nos despimos, desde que trepamos pela primeira vez, ela estava se despindo de vergonhas e aparências e fez tudo como nunca e gemeu e gritou e fomos e fomos e fomos até sermos apenas dois corpos repletos de suor e satisfação e paz e cansaço e tesão de começar tudo de novo.
- Adorei o livro.
- Puxa, só isso, o escritor, mesmo maltrapilho como eu, sempre espera uma crítica mais contundente.
- O que posso dizer se é bom, se cada personagem é algo que podemos tocar, ainda estou refletindo sobre isso, mas adorei a Analice.
- Ela é tudo o que você podia ser.
- Só fui dormir depois de ler tudo isso. Como pretende terminar essa história?
- Não sei, se você me permite quero começar uma outra.
- Ou recomeçar? - estávamos quase colados e não foi difícil roubar-lhe um beijo e algo novo começou a existir.
Ela não tinha motivos para esconder a nossa relação dos outros e, aos poucos, sem fazer alarde, todos passaram a ter certeza de algo que já desconfiavam, que estávamos namorando ou amasiados, seja qual denominação fosse. Na verdade, foi importante ter me distanciado para poder tentar terminar meu livro e para que ela entendesse que o que vale é tentar ser feliz. Porra, sexta é amanhã, tenho que me apressar para finalizar o último capítulo do livro.