segunda-feira, 27 de junho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 6

O tempo rolou sem piedade, é bem a cara do tempo passar e nos pegar de surpresa quando percebemos que ele escorreu feito água pelos dedos da mão. Numa manhã de domingo, fui dar uma passeada pela feira hippie da República, durante esses dias de trabalho no Bigode não havia saído para outro canto aos domingos, ficava largado pela Rêgo Freitas todo dia de descanso, escrevendo sentado numa cadeira na calçada. Caminhando entre barracas de artesanato, me sentia novamente entediado, sentia saudade de minha casa que estava à venda fazia um tempão, sentia até saudade de minha mãe, pessoa que jamais deveria ter me esquecido por ter feito de tudo para que eu crescesse saudável e terminasse os meus estudos. Domingo sempre foi um dia estranho, repleto de pessoas iguais espalhadas por todo lado, mais uma vez pintou a vontade de suicídio diante do paraíso dentário de sorrisos toscos que se apresentavam à minha frente. Já estava lá bem mais do que o tempo que o Bigode me pedira, estava chegando a hora de partir, poderia colocar a casa para alugar e puxar o carro da cidade de São Paulo para realizar o desejo de morar numa cidade pequena, onde todas as pessoas se cumprimentam e vivem sem pressa. Perambulei pela Praça por quase toda a manhã e, sentindo o bom sol desaparecer, deixei, em meio às árvores, toda e qualquer sensação de angústia para trás. Para que o tempo não nos devore de todo é necessário fazer de cada dia algo transformador e, enquanto caminhava tocando a gentileza de pessoas que distribuíam alimento para os moradores de rua, respirei fundo e abandonei de vez a desesperança, decidindo entrar de cabeça na coisa de escrever o livro, dar cabo ao trabalho no Bigode, enfim, viver sem grandes grilos na cabeça, viver por viver, piano piano, como dizia o velho Gariba, bebedor de Grapa lá da lanchonete. 
O Bigode não era de ficar aberto até tarde, tanto que a calçada era uma espécie de banheiro dos frequentadores da rua; quando chegávamos pela manhã ele me dizia para jogar água, sabão e cândida, era o único instante do dia que ele era mal educado; chegou ainda menino com seus pais da Espanha, fugindo da ditadura de Franco, estava naquele endereço há uns trinta anos, às vezes se virava e dizia que aquilo já era, que havia realmente se transformado numa boca de lixo. Um belo dia, ele me puxou para uma conversa após o almoço, dizendo que teria que viajar para a terra de seus pais para resolver assuntos de família e que permaneceria por lá alguns meses, pediu para que eu ajudasse o Zelão, que era o seu cozinheiro, a cuidar das coisas, ou seja, abrir, fechar, comprar o que fosse necessário e pagar as despesas. Num primeiro momento não achei boa a ideia, os meses que ele me pediu se transformaram em anos, mas quem fazia o pedido era um sujeito extremamente camarada, que sempre me ajudara e que me solicitava ajuda num momento de dificuldade familiar, no fundo ele era tão solitário quanto eu, mesmo casado há muito tempo, não tinha filhos e, o que era pior, não confiava no irmão de sua mulher.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 5

Numa noite fui jantar no Bigode e, enquanto esperava o bom bife acebolado, ele me apareceu perguntando se eu não estava disposto a trabalhar com ele durante as férias de alguns de seus funcionários pelos próximos seis meses; achei boa a proposta, afinal, teria todas as refeições na faixa e ganharia uma grana para cobrir o aluguel e comprar a  máquina de escrever para dar uma ripa no meu grande romance. Alguns dias depois, iniciei as minhas atividades atrás do balcão para constatar que divã mesmo é o velho balcão, por ali passa todo tipo de pessoa e há uma diferença brutal entre frequentar um bar e trabalhar nele; na verdade, não trabalhei num bar, mas numa lanchonete, de qualquer forma, a coisa é a mesma. Chegava por volta das seis da manhã para abrir o lugar junto com o Bigode e, sempre na porta, dois ou três sujeitos nos esperavam para a primeira cerveja do dia. Minha função era preparar o café, fritar os salgadinhos e atender o balcão e as mesas até as nove horas, quando chegavam mais três funcionários que aguentavam o tranco até o Bigode fechar as portas.
A coisa era bem legal para quem precisava de personagens sortidos para compor uma história, embora, por alguns dias, tenha deixado de lado o meu romance para tirar um cochilo depois daquele lavoro extenuante ao qual, aos poucos, fui me adaptando sem grandes dificuldades, uma vez que era só decorar os nomes dos pratos do dia, que se repetiam como os dias da semana se repetem, exceto domingo, quando prato nenhum era preparado por ser o dia do descanso; as bebidas possuíam cada uma um nome e um apelido, os habitués do lugar as mesmas manias, assim, em pouco tempo, me transformei num puta atendente. Entre onze da manhã e três das tarde, o bicho pegava para a hora do almoço e era aquela loucura em que não dava tempo nem para beber um copo com água ou ir ao banheiro. Não demorou e o Bigode me pagou pelo primeiro mês de bico, com isso fui até uma loja na Santa Efigênia e comprei minha máquina de escrever, optei por uma usada, de cor preta, tipo de redação de jornal, boa máquina que me acompanha até hoje. Comecei a redigir tudo que havia escrito sem alterar nada e, em pouco tempo, já estava escrevendo coisas novas adaptando as pessoas que frequentavam o Bigode como personagens, dando caráter e expressões diferentes para cada um, era divertido tudo aquilo mesmo sem saber ainda como adequá-los dentro da história, era como criar um jogo qualquer. 
Algumas coisas doidas aconteciam lá no Bigode e uma dessas coisas acabou rolando quando uma greve dos motoristas do transporte público assolou a cidade; naquele dia, apenas o Zelão, o Bigode e eu demos conta do recado, embora o movimento não tivesse sido grande coisa, ao fim do dia estávamos só o pó da rabiola como diria o outro. Por volta das sete da noite daquele dia, o Bigode foi ao mercado com o Zelão e eu fiquei limpando o piso, quando um sujeito entrou e se sentou numa banqueta diante do balcão, “ tá fechado chefe”, eu disse.
- Só preciso de uma cerveja, nada mais, ele disse colocando sobre o balcão o chapéu Panamá.
- Na próxima quadra tem outro bar aberto.
- Enquanto você passa o seu rodo bebo uma e salto fora.
- Acontece que acho difícil alguém manter-se apenas numa primeira.
- Não tenho motivo para beber mais do que uma garrafa.
- Tá certo, meu velho, vou confiar em você, Brahma ou Antarctica?
- Não tem Skol?
- Não.
- Brahma.
Abri a garrafa, dei-lhe um copo e fui terminar o meu trabalho, não demorou e eu já havia terminado.
- E então? - perguntei.
- Beba um trago comigo, assim termino mais rápido.
- Hoje o dia foi realmente cheio e até cabe uma cerva.
- Acabo de chegar de uma cerimônia fúnebre, foi uma experiência bem estranha, principalmente quando me coloquei ao lado do caixão, todos começaram a perceber a semelhança entre o velho carcomido pelo tempo e eu, cochichos começaram a pipocar por todos os lados, sim eu era o filho daquele homem morto, estava diante dele apenas para constatar que não se levantaria jamais, não estava ali por afeição ou por ódio, só queria verificar se foi bem empregado o dinheiro que dei para a minha tia. Interrompeu o que dizia para dar um belo trago.
- Puxa, que coisa mais maluca.
- Pois é, o desgraçado me abandonou ainda criança e eu paguei o seu enterro, diante daquelas pessoas a minha boca estava seca, tive vontade de dar-lhe um beijo, afinal, ele era o meu pai, calado, envolvido numa caixa de madeira, em pouco tempo apodreceria debaixo da terra, já o tinha como um grande verme para não dizer outra coisa, viva a podridão! - gritou aos prantos.
- Vamos beber outra, esta por conta da casa. Bebemos a segunda e ele foi embora, ainda tropeçou com o Bigode e o Zelão ao sair, acabei colocando essa história no meu romance.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 4

Na manhã seguinte despertei pensando em suicídio, porém não havia nenhuma pistola em minha gaveta, com um barbante não daria para fazê-lo, observando todo o caos ao redor decidi botar ordem na casa e fui lavar as roupas que se avolumavam pelo pequeno espaço. Não levei muito tempo diante da pequena máquina que Dona Maria colocava à nossa disposição, felizmente me lembrei de tirar do bolso da calça o endereço para a festa que tinham me convidado para o final de semana, onde poderia me divertir, comer e, sobretudo, beber de graça.  Depois de colocar os trapos para secar, fui até a lanchonete do Bigode para comer alguma coisa, ao atravessar a rua encontrei com o velho Gutiérrez que me abraçou de forma efusiva como se me conhecesse de longa data, coisa de poeta, resmunguei entre pensamentos. Perguntou-me para onde eu iria e respondi que iria até o Bigode, como ele não gostava do velho espanhol me chamou para comer algumas coxinhas no Bochecha por sua conta, sem ter nada para fazer de importante topei e fomos até o baixinho na Major Sertório. Passamos a tarde nos entretendo entre goles e papos nada sérios até ele falar sobre a pequena Vânia; senti que ele babava ao falar da vontade em ter aquele par de coxas quentes da guria, fui tentando sair daquele papo furado, que droga será que não tinha nenhuma outra mulher no mundo daqueles caras? O velho Guti era bem pior do que eu esteticamente falando, pobres diabos era isso que representávamos. Observamos que a noite caía quando a cada instante minas e monas iam ocupando a calçada do bar, bebemos a saideira, que foi a única coisa que ele me permitiu pagar e, reforçando o convite para a festa que rolaria em alguns dias, zarpou fora.
Voltei para casa após algumas horas passadas com aquele poeta imprestável e, se pela manhã meu desejo era de suicídio, à noite subitamente resolvi botar ordem no cubículo, guardando cada coisa que estava fora do lugar, liguei o velho rádio e, entre canções, deixei o tempo correr solto, foi aí que me veio a ideia de escrever o meu livro, todo o enredo passou claro pela cabeça e seria sobre a mulher fatal, uma espécie de pessoa que desfigura todos ao seu redor, ficando sempre por cima da carne seca, afinal, que raio de triunfo é esse de ser o maioral por estar por cima da carne seca? Bem, não importa, e assim puxei a minha pena e comecei a delinear cada personagem e coisa e tal. À medida que folhas e folhas começavam a ser empilhadas percebi que a história estava ficando engraçada ao contrário da leitura que havia consumido ao longo da vida; geralmente quando começamos a escrever temos estilo semelhante a determinado autor que mais apreciamos e senti que estava entrando numa outra linha e isso me deixou bastante animado, só que precisava de uma máquina de escrever para que a coisa rendesse, além de não perder o precioso tempo tentando decifrar algo que havia escrito depois de beber algumas cervejas.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 3

Entre comentários de alguns livros, fui me aproximando dela, embora amizade não fosse algo que me movesse na direção daquela pequena, era isso que rolava no começo. A gente se via na biblioteca, fazíamos, às vezes, um lanche juntos, aos poucos comecei a fazer algumas gracinhas para que sorrisse, era aquele grande lance de êta vida besta estar diante dela. Um dia ela me convidou para um sarau em sua casa, entrar em seu mundo também representou a descoberta da vida em família, a relação com um grupo seleto de amigos, um mundo pequeno burguês, é verdade, mas dane-se, era um convite irrecusável e dessa forma fui até lá. Estava inseguro à beça e, para piorar, fui o primeiro convidado a chegar, tendo que aguentar o blá blá blá dos pais dela, que eram bem agradáveis, nada agradável era estar ali diante deles falando sobre a minha vida, o que fazia e como justificar aquele estado de desempregado daquele momento? Eles eram corteses demais, sabiam que receber os amigos da única filha em casa propiciava que ela passasse mais tempo ao lado deles, sabiam que já estava para se formar e, em pouco tempo, seria flecha solta rumo ao desconhecido. Aos poucos, seus convidados foram chegando, também algumas garrafas e livros, até que alguém sacou uma viola e a coisa começou. Toda a ordem deixou de existir sem que houvesse se instalado o caos, declamações de diversos poemas de poetas consagrados ou anônimos, no intervalo muita música rock e MPB. Fiquei quieto num canto, observando tudo aquilo que para mim soava extraordinário, jamais havia passado por uma experiência daquelas, havia um cara ali que representava a própria loucura e se distinguia de todos os outros por ser o único, entre os amigos da Vânia, que não estudava em faculdade nenhuma e vivia de bar em bar, inclusive foi num boteco que a conheceu, não dava trégua e sempre que alguém marcava bobeira ele declamava um poeminha de sua autoria. Temos certa tendência a nos aliarmos a seres que são parecidos conosco e aquele sujeito barbudo, um tanto maltrapilho, era bem a minha condição no evento, ele era figura de destaque, enquanto eu uma mera decoração que não parava de beber um só instante. Aos poucos, Vânia, percebendo o abismo entre o novo e os velhos amigos, me apresentou para algumas pessoas entre elas o poeta barbudo, que se chamava Gutiérrez, com quem estiquei uma longa conversa sobre uma infinidade de temas, outras pessoas foram se juntando ao nosso lado e, assim, fui me entrosando com todos os outros. A noite foi dando seu contorno rumo ao dia, estava longe do centro, mas isso não era problema, podia ir na caminhada até o meu canto, preocupante era o meu estado que rompia os limites da embriaguez, havia falado de coisas das quais até então nem sabia que existiam, fui convidado para outra festa, minha cabeça girava numa grande confusão e Vânia por onde andava? Aí me dei conta de que nada tinha feito para estar ao lado dela durante toda a noite, por outro lado, toda aquela bebida fez com que eu me interrogasse, afinal, o que uma menina como aquela iria querer comigo? Saí sem dar tchau para ninguém, me apoiando em muros e postes, desci a Peixoto Gomide, entrei na Augusta até ganhar meu cafofo na Rêgo Freitas.