terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Do que somos feitos

A poesia jorra pelos poros cotidianos sem ser percebida, escorre pelo meio fio, se mistura com as flores varridas do Ipê, juntas vão para um saco, que acaba sendo furado pelo bicho homem, que não quer saber de flor tão pouco da fragrância das palavras, é atirada dentro de um caminhão, remexida, triturada, bom que seja imortal e termina por desembocar num aterro sanitário qualquer. Naquele local permanece ao relento entre dejetos humanos, sente a necessidade de ser presente, ela poderia alimentar algumas pessoas que se esgueiram por ali, não querem nada de fino biscoito, buscam a possibilidade do vil metal, apenas isso. Ressurge em forma de chuva, o povo se apressa em procurar abrigo, ela os acaricia enquanto correm, se mistura ao suor de cada um, nesse instante é feliz, adentra as ruas nobres, de classe média, das favelas, pipoca pelos varais, se intromete nas brincadeiras, assusta, refresca, e finalmente pode ser admirada, quando um raio de sol toca a umidade suspensa no ar e lá está ela, refletida pelo olhar de toda gente, em forma de arco íris no céu.

Fotografia: Alexandre Handfest  

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Primeira vez

Ontem, assim do nada, como tudo que nos ocupa numa resposta um tanto rápida mas, que depois fica mexendo contigo que nem o tempo veloz esvazia, pintou a pergunta, como foi a tua primeira vez? Hoje, os afazeres não eram tão grandes, problema maior era a boca seca, cujo remédio é uma gelada acompanhada de um charuto para espantar gente chata, fui ao Arlindo que sem receita me forneceu preciosos elixires. Enquanto a fumaça se dissipava, estendi olhar numa pequena mergulhada numa pequena tela, duas mesas após a minha, o desvencilhar do entorno em que ela se achava, me fez dropar na onda da memória. Era chuva, a gente corria, de nada adiantava, era água demais, então rimos ao mesmo tempo, dentes novos como nós, um  abrigo, amor deixando as fraldas, aprendendo a andar, seios dela, duas amoras doces, o beijo era o ainda morde lábio sem querer, procura achar encaixe, assim já era o que cobria Adão e Eva, tesa, teso, entra, sangra, dói para os dois, nem foi tão até o fim, a inocência por certo se foi misturada com as correntezas da vida, no silêncio as mãos se seguraram na barra dos onze anos, beijos raros parcos algumas vezes depois, nada mais que isso, ela se foi, eu também, ontem voltou e, eu queria retornar para aquele dia, queria o sol, a risada e nada de dor. 

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

morro amanhã

Não podia passar daquele dia, tanta gente já passou por essa experiência, alguns não tiveram sucesso, isso é terrível, além da solidão já existente é o olhar de pena dos outros. Primeiro aquele bom café na padaria, pãozinho fresco, o rebolado de Cibele, tão gentil garçonete, aquele jornal de sempre, que o antigo amor chama com certa razão de imprensa golpista, o rito de todos os dias, insuportável caminhada, voltou para casa com a cabeça no inevitável momento, como fazer? que tipo de instrumento? puxa, morava no primeiro andar, qualquer tentativa de salto impossível, o velho calibre guardado, perfeito, daria uma utilidade para aquela coisa, era sexta feira, ia destruir o final de semana das pessoas mais chegadas, a família teria que se deslocar lá do sul, o churrasco do domingo é religioso, essas tradições todas que ele não era muito apegado mas, que morando longe e, ainda com os fundilhos doloridos pelo pé que levou da amada, acabava por sentir saudade daquela tosca reunião familiar. Adiou para o dia seguinte, achou o poeta num butiquim, amigo novo, ficaram deslizando numa Boazinha por horas, versos, poeminhas do Bandeira que pipocavam, um tema qualquer poesia pronta em guardanapo de bar, coisa ébria que não se aproveita diziam, a garrafa se foi, a noite também, já era manhã, não seria justo abandonar a causa justamente no dia da criação, ecoava em sua cabeça a declamação do santo Vinicius, após abrir a porta com certa dificuldade se atirou no estofado em sono profundo.  Despertou lá pelo meio da tarde, o sol batia feroz na sala, foi até uma birosca comprar o almoço, se sentia um desses escritores que fazem da vadiagem uma arte, ria por dentro enquanto arrastava os chinelos pela calçada, decidiu comer por ali mesmo, não queria deixar louça suja, um corpo já era demais, como as pessoas são fúteis poderiam utilizar certo desleixo com a higiene para nem pesquisarem com mais atenção a causa pelo ato fatal, o povo do lugar era de doer, a comida boa, as coisas nunca são como a gente deseja né não? sacou do telefone um filme sobre um casal existencialista, chegando no apê jogou o filme em sua tv modernosa, abriu uma Baden Baden, acendeu o charuto, felicidade total, ficava pensando se a preparação de todos aqueles que talharam a vida tinham sido assim, uma despedida feliz e coisa e tal, abriu outra, ultima, não seria justo que bebessem a sua cerveja, ainda mais uma Red Ale, uma esticada num documentário sobre o filósofo Diógenes, fresca noite, certo cansaço lá se foi guiado pelo sono. Domingão azul, praia de paulistano, pastel na feira, a menina também estava lá, ela sempre sensual, óculos escuros, as marcas da noite, puxa, já brincaram entre lençóis, palmito, legal, garapa doce, língua nos lábios, caiu na área é na cal, partiram os dois para a horizontal, na boa, ladinho da feira, a casa dela, sozinha, separada tinha bom tempo, essa gostosa brincadeira, passear pelado, como rango o clássico “restê dontê,” ouvir um Coltrane, chupar a fruta até caroço, fica, pedia ela, não, disse ele, amanhã volto das férias, nem ia, já sabia que era chegar em casa pegar o velho 22 e meter uma bala na cuca, foi uma maratona o final de semana, as horas derradeiras do fim, o corpo, estava assim como diz a rapaziada, só o pó,  pegou a arma na gaveta, sujo, barba por fazer, corpo assim não deve ser encontrado, barbeado, cheirosinho, foi ver os gols da rodada, dormiu, quando acordou com o despertador do telefone celular berrando, viu a arma sobre a mesa, não hesitou,  a colocou pronta para finalmente com um estampido se despedir de tudo, com um estrondo acordar a vizinhada chata, botar abaixo os alicerces de condomínio familiar,  fitou o calendário na estante, era segunda e por detestar esse dia resolveu deixar para terça.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

vazio


Mais sozinho que de costume, nesse fim de manhã deslizo o meu olhar pela paisagem, uma televisão ligada sempre na mesma emissora, imagem sem áudio ainda bem, não dá para um bom café com papo furado via Embratel, a preguiça do domingo que se debruça sobre as pessoas, a censura da menina granola sobre a criança que se acaba numa fatia de salame na mesa ao lado, nada na cuca, tão bom, confesso que é difícil ficar assim, geralmente trago umas folhas, uma caneta para alguns versinhos, não tenho disciplina para a escrita, nunca tive, nesse  lugar as ideias pipocam, nem sempre ganham forma mas, dá para matar o tempo, assassino das horas fito o velhinho que sempre aparece para três pães e um litro de leite, sinto um certo efeito de amanhã nele embora, no ontem tenha feito isso quando ela ainda me suportava, um pão para cada e outro que ficava amanhecido, depois virava torrada, ganhava geleia, se cansou da rotina, nada deixou tão pouco bilhete, também depois de um tempo a gente nem quer saber, nem vira página, adquire tudo digital, uma vida instantânea puta Sonrisal, nem sei se tem mais isso, tédio sei que existe, para não me carregar de um total araã, invejo o cara que mora na calçada, vive de uns quadros que pinta ali mesmo, se alimenta do que a lanchonete oferece, aos domingos da padaria onde me encontro, comprei um trabalho dele outro dia, pode ter sido a última vez que tenha conversado de forma mis demorada com alguém, pinta com os dedos, não utiliza pincel, o povo comum passa por ele, nem percebe que ele está no caminho, alguns chutam a tinta que ele deixa na calçada enquanto medita uma face, os seus desenhos são carregados de rostos, sempre oferece uma pinga para seus semelhantes de relento, possui generosidade, tanta gente se cercando de coisas materiais e, esse individuo que nada tem reparte a pura inexistência, de que somos feitos afinal? A fila pela pelo frango assado, a torta de morango que já esteve pela hora do enterro e hoje está quase de graça, esfria o café, espio, desisto disso, pego uma Stella que não é Dalva, não se avista no céu, é amarga, porta sonhos, companheira da tarde de mais um dia, hora, mês, um fone no ouvido, um Miles, mais nada, essa gente não merece meu olhar que busca o vazio.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Estela

Tem algumas décadas que se você foi prezado Tom, fica o seu isco chamado Inéditas girando na vitrola, tem nostalgia em cada arranjo, não tua, mas de Estela que dias atrás nos deixou, era de fibra, é ainda, sempre será, tenho uma forma estranha de me relacionar com a ausência, lacrimejo por dentro,  busco na memória momentos bons que quase sempre misturo com tragos líquidos e do companheiro charuto, hábito que você também tinha, perdi o meu chapéu outro dia, ao contrário de ti possuía apenas um, ainda não bateu em minha porta uma proposta para ganhar alguns trocados com arte, não tem crise, a gente vai levando, difícil meu velho é lidar com as palavras, se o tema é saudade brota uma tristeza que já vou moldando para alegria, festa, era assim a nossa magrinha, sacolejo no samba, não tinha dispersão, a bravura indômita de uma canceriana, o abraço de tantas cervejas, vinhos, das reflexões pela madrugada quando a folia baixava um tantinho, passou o carnaval em tua terra, não pendurou a saia na quarta feira, continuou dançando, arrastando as sandálias até o domingo, a vida Tonzinho não é só isso que se vê, é preciso dela sugar até o último suspiro, nada pode nos deter, meu querido Brasileiro Jobim, as tuas águas vão banhar o corpo de minha amiga, assim, quando eu for ao Arpoador poderei abraçar e contemplar a eternidade de vocês dois.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

um telex de meu querido Maria

Caro poeta, submerso por uma onda de cor e corpos, vou seguindo pelas ruas do Rio, praticamente por onde  deixou as suas pegadas, ali do Forte de Copacabana até a esquina daquele bar da feijoada, foi o que se pode dizer, ou quase, uma tragédia carioca. Que ausência que o Rio ficou esses dois dias. O Rio fala com a gente poeta, foram conversas soltas pela noite, mas, outro dia te conto. Eu percebi aquilo que meu irmão falou sobre o fim do mundo, quando as águas tornarem a consumir e, depois voltarem à sua condição normal de água, só vai sobrar esse lugar mesmo. Meu poeta, tive um sonho ontem, sonhei que o Rio tinha deixado de existir, até aí tudo bem, duro foi ter que te dar a dolorosa notícia, pensei em você e em Ariadne, nas tardes de Maracanã sem Zico, no Flamengo, na nossa escola de samba ( que por sinal foi bem ontem) acordei, na verdade, a luz dourada do dia me despertou. Queria estar por aí para ouvirmos o hino da Guanabara e para bebermos até a nossa angustia se desfazer. O homem preto ao meu lado no desfile, era aquele que me disse, preto, banguela, frequentador da geral do antigo Maracanã, capenga por completo, derrotado, nosso quase contraparente, é com certeza um daqueles sacanas que só nós conhecemos. Ele só não é mais sacana do que você, não que ele não seja carioca, falei de ti para ele, ficou abismado, soltou aquele sorriso de neném, gengivas rosas de pura beleza, foi apenas para ver uma escola, antes de me deixar ali, pediu para que te mandasse um recado, vai ser carioca assim la longe!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Moinhos


Todo alvorecer tem aroma de livro novo, aquele que seus olhos ansiosos desejam percorrer cada página, saborear como se faz com a mais tenra fruta, apesar de todos os percalços, o ressurgimento do dia, instante em que as agruras noturnas se dissipam, porta sempre um lirismo que na correria cotidiana nem percebemos.
Durante a noite se entupiu de analgésicos, precisava de alguma maneira encontrar certo alívio, a embarcação balançava causando dores insuportáveis, diversas vezes despertou, não conseguia ver o rosto do timoneiro, não era homem do mar mas, da terra, nela tinha conseguido tudo na vida, eram águas turvas, as outras pessoas não demonstravam qualquer alegria, eram seres resignados, quantas conquistas sobre o seu cavalo, não podia aceitar aquilo, observou o condutor da nau reconhecendo Caronte, sacou a sua espada, exigiu que retornasse ao porto, queria ver gente, nada de despedida, queria abraçar o seu fiel amigo, a face cruel daquele indivíduo que só conduz para frente e, não admite retroceder, se levantou, trôpego e com toda a bravura que lhe restava, partiu para cima mas, antes que se aproximasse daquele ser soturno apagou.
Despertou do pesadelo com mão de Dulcinéia em seu rosto, a mais bela de todas as mulheres diante de seus olhos, em meio aos delírios de febre ela o conduziu ao doutor, entre pares tão rotos quanto ele, apenas esperava que algo acontecesse, mergulhou nas aventuras do cavaleiro de triste figura, a luta contra os moinhos era tão complicada quanto respirar naquele instante.
Como um guarda Belo, o homem de branco seguia o roteiro de seu turno, flanava por olhares carregados de agonia, com o tempo os murmúrios de dor não incomodam tanto os ouvidos, o olhar torna-se frio, no entanto, naquele início de tarde, observou sobre a maca um indivíduo com a cabeça dentro de um livro,  se aproximou, estabeleceu um diálogo com a pessoa, entre comentários, algumas risadas, que o paciente não podia corresponder, o rosto rubro era a tentativa de realizar algo que era a sua marca registrada, o sorriso e a ironia, percebeu que havia algo de sério, puxou o prontuário, estudou cada radiografia, chamou um enfermeiro e ordenou que levassem o paciente para o centro cirúrgico.     
A tarde, que bronzeia o corpo do dia para o passeio sob um céu de estrelas, seguiu para ele em sono profundo, adormecer é não seguir o giro dos ponteiros, ali, no vazio, entregue o corpo ao trabalho dos homens, ter habitado a terra não possuía significado nenhum. Quando, enfim, abriu os olhos, o branco não era dessa tosca percepção que pregam tantas religiões,  quarto de hospital, aroma tétrico, a boca não salivava por um cigarro, que ele mama, mas, por uma coca-cola, que ele odeia, diante dele não havia Dulcinéia, só o amigo de horas atrás, já sem jaleco, que balbuciou em seu ouvido:

- Não tente falar, todo procedimento ainda é recente, salve  Dom Quixote.