sexta-feira, 30 de outubro de 2015

máquina


Nessa vida de máquinas, concedemos o espaço para quem primeiro necessita chegar. Nessa vida de máquinas, sentimos a ausência do básico, para que a engrenagem possa funcionar. Nessa vida de máquinas, levamos uma mochila que contém as coisas vitais para o dia, que carregamos nas costas, se transformando em estorvo para quem precisa caminhar. Nessa vida de máquinas, passamos com todo cuidado, para não tropeçarmos em seres camuflados em notícias envelhecidas que se repetem a cada manhã. Nessa vida de máquinas, ainda procuramos um alimento novo que não engorde, que deixe a pele alva e o sexo novo. Nessa vida de máquinas, olhar nos olhos é ferir a carne como se fosse o sol na íris do vampiro. Nessa vida de máquinas, o sangue não pode ser vermelho, essa cor é de quem deve ser morto. Nessa vida de máquinas, um verso no elevador cora a bochecha e faz surgir um sorriso no rosto da menina. Nessa vida de máquinas, tem uma roseira que Aliete plantou e que não deixa de brotar esperança. Nessa vida de máquinas, de mãos dadas ao pai, a pequena percebe a junção das letras, o sentido de algumas palavras. Nessa vida de máquinas, é um saco repetir quase sempre as mesmas coisas, vocabulário restrito de quem não procura o impossível de voar. Nessa vida de máquinas, a página pulsa pela derradeira palavra para que possa enfim descansar. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

uma pessoa

Quando necessito da crônica é a poesia que pinta. Procuro adaptar os versos num enredo e, a linha para a pena e a ideia não segue adiante.  Queria ficar só, nada além disso. Puxei o cachimbo, mesa na calçada, taberneiro trouxe torresmo e uma Colorado. Harmonizar manhã/tarde de sábado. Essa coisa eterna de estar sendo filmado, não gosto muito de citações mas, é inevitável não se sentir dentro de um 1984. A tinta preta da caneta, o café na cerveja papel branco. A íris sol, gente que passa presa na coleira do cachorro, poucos passeiam com carrinho de criança, na para onde me exercito é a maior cachorrada. Geraldo me traz água, coloca uma de rapadura no balde, conhece os meus hábitos, me trata como filho, sabe que nunca tive um pai, enquanto o povo que aprecia a sua feijoca não chega, sou cercado de mimos. Ele, aprecia os líquidos que bebo, curte o aroma da fumaça, é um cidadão flor, exala odores de paz, calejadas mãos, porradas desferidas, muito mais recebidas, a sina quase sempre é assim, cai, levanta, correria para que o bicho não coma. Foi numa noite ébria que o conheci, estava com alguns que não voltei a rever, ele chegou na casa do poeta pra preparar o cordeiro. Você diz que não tem preconceito mas, no fundo rola certa tendência de não curtir determinada coisa. Certo cochicho entre os meus, fui, parti, por isso não voltei para o grupo. A criança, antes de qualquer outro, correu para lhe dar um abraço. Algumas aplicações equivocadas, desfiguraram um pouco o rosto, os peitos cresceram bem Fafá, precisa importar os sutiãs, preparou o prato que saliva só em lembrar, batemos longo papo, adotou Shirley como nome, o chamo de Gê, no fundo é travesti mais lindo do planeta.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Serafim



Era quase uma canção de ninar, a voz da moça entoando a história de Serafim, a cada palavra rolava uma saudade, estávamos novamente numa época de esperança, a suavidade da moça, o violão, dentro de uma noite onde nos reencontrávamos. As casas devem ser abertas sempre, para que tenham história, nada mais chato do que retocar a tinta de uma parede, sem a marca de algo que nos transporte pelo tempo, tá certo que casas são templos mas, é necessário que sejam abertas para que não se transformem em seitas fechadas em muros. Saíamos do silêncio para cantar o refrão, breves minutos em que um querubim passa pela vida, olhos se fechavam enquanto a musica caminhava, esse ato que precede o beijo, essa forma que conduz para dentro da gente o momento do sono, onde encontramos força para a lida, para terminar o texto no desassossego. Assim como chega, vai embora o amor, alguns ficam juntinhos por quase uma eternidade, que deixam de confundir pernas, para pegar bengalas erradas, riem da confusão mesmo assim, ainda reclamam pela desorganização de um e de outro. Ao final de Serafim, as filhas fitaram as faces, uma década separando cada uma, sorriram talvez sem entender, com o passar dos dias pode ser que toquem no assunto, piano, piano, como de diz em italiano, as cordas ecoaram o último verso, depois das respirações profundas,  o espaço foi ocupado por uma crua felicidade, foi a forma com que aplaudimos a nossa capacidade de ir além.

O mar


Lua alta, redonda, céu sem limite se encontrando com o mar, paisagem única. Ela sentia seu corpo quente. Ele era certa solidão, pensamento distante. Se acharam por acaso passeando pela areia, quando os olhares se encontraram ainda distantes, passava por dentro de cada um aquele frio que busca conforto, risos pela coincidência, sem palavras seguraram as mãos, algo por dentro era uma roda girando o desejo de que é preciso ir além, lábios, línguas enlaçando, soltando para fora a vida presa, podia ser de outra forma, o acaso é o que muitos chamam de coisa de Deus,  abraçados procuravam desatar os nós, na excitação, perceberam os espaço, entraram no transe, na paz, diante dos olhos dos orixás, ficava para trás as brincadeiras infantis, pertenciam ao mesmo lugar desde sempre, se amavam bem antes de terem desembarcado por aquelas terras, era justo que os dois se desvirginassem, que o sangue, amor/dor fosse lavado pelas ondas verdes que era razão de viver e morrer de todos. As mãos ainda unidas, permaneceram estirados na praia, em instantes passaram a traçar planos para o futuro, casamento, filhos, deixar a vila dos pescadores, tanta coisa além dos limites do que nem podiam imaginar que existisse. Em meio a conversa ela adormeceu. Pedro não conseguia, dentro de algumas horas seria o desbravador do mar, na peleja para colocar em prática outra existência.  Quando baixava a lua, sabia que era a hora de partir, levou a pequena para a casinha dela, depois de um longo abraço, partiu rumo ao seu destino. Era feliz como o vento que batia em seu rosto. Todos os pescadores retornavam no mesmo horário, ela correu para a sua chegada, ficou parada, tentando avistar o seu barco e nada, triste, abraçou a mãe, Firmino, pescador experiente, tentou consola-la, dizendo que ele podia ter ficado numa ilha para tentar uma pesca maior. A lógica de quem não retorna é quase sempre história para o futuro, algo que se conta em meio aos tragos noite adentro, por mais simples que possa parecer a vida naquele lugar é carregada de grande mística, Tem hora que a gente pragueja contra os santos que amamos, depois a gente volta atrás na esperança de que algo de bom aconteça, ela vivia esse dilema, acendeu uma vela, se lembrou do pai que também partiu sem dizer adeus, sem sofrimento de doença, a vela se apagou de forma repentina, ela reacendeu, chorou em silêncio pelo sinal que recebia das esferas superiores. Numa manhã, todos correram para o mar falando o nome de Pedro, ela sentia o coração bater firme, queria beija-lo, tocar o seu corpo salgado, destruir a saudade, corria se desprendendo da redoma do medo, teria trazido além de grande cardume, peixinhos dourados e conchinhas coloridas para ela? seus pés descalços velozes, Chica, sua mãe, pedia calma, ela chegou e deu com o corpo de Pedro ao lado das pedras, mordido de peixe, no choque não passou lágrima pelo rosto moreno, apenas disse baixinho, morreu, morreu.