segunda-feira, 25 de julho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 10

Ela retornou com uma amiga, num sábado qualquer, para degustar a nossa feijoada que naquele dia estava espetacular, Zelão caprichou mais do que o habitual, sentia que em alguns dias iria comprar o negócio, já falava como se fosse o dono e era bacana ver a felicidade no rosto daquele sergipano; todos estavam felizes mesmo com a bola na marca do pênalti, sentíamos que o gol era certo. Por volta das três da tarde, a coisa acalmou e, então, me arrastei para a mesa onde ela estava.
- Gostou da feijoada?
- Não é tudo isso que diz a propaganda, mas deu para gasto, né, Carol? - a amiga fez que sim, gesticulando com a cabeça.
- Meu nome é Carla, muito prazer.
- Dilermando. - respondi, segurando a sua mão macia.
- Hoje o dia está ótimo para uma feijoada e, como precisava passar pela Marquês de Itu, resolvi almoçar aqui para verificar se o que você me disse era verdade mesmo.
- O importante é que você gostou e sabe, desculpe a indiscrição, achei ótimo você ter voltado, principalmente depois daquele bilhete simpático que escreveu, pensava que não a veria mais. - Ela sorriu e a amiga comentou qualquer coisa, enquanto eu saía para receber a conta de um cliente.
Passamos a tarde inteira juntos, bebendo e conversando, conversando e bebendo, aquela empatia boa rolou entre nós três e, por volta das oito, quando uma chuva fina desabava sobre as calçadas, Carla nos convidou para uma pizza em seu apartamento e para lá fomos e entre pizzas e vinhos, escutamos Maysa, Tom, Vinicius e Chico. De repente, já era madrugada, de repente, já era domingo, de repente, o dia do adeus para Vânia se aproximava e, diante de mim, o castanho olhar de uma nova pessoa, o castanho olhar de uma nova história, o castanho fim para recomeçar. Antes de sair, Carla me convidou para uma macarronada no final de semana seguinte, seria num domingo e Carol já tinha topado a parada, aceitei sem pensar duas vezes.
Sempre gostei de caminhar e viver numa cidade pequena torna este prazer ainda maior; de noite, pode-se ouvir as famílias conversando dentro de suas casas, observar a senhora que todo mês acende uma vela ao lado da cruz às margens do igarapé onde o seu filho morreu afogado, ver o velho que passeia com o cachorro pela praça sem se preocupar em recolher as cacas que ele deixa por ali - espero que um dia ele pise na merda que o cachorro larga pelo caminho - e as mesmas discussões no bar dos estudantes.  Poções é pequena como foi e tem sido a minha vida, mas ela consegue ser mais rica em harmonia e paz. Estou a uns trezentos metros do bar e não é tarde da noite, talvez seja tarde para a felicidade, nossa como sou piegas, pensando enquanto caminho.
Ela fez toc, toc na porta e nem me beijou, na verdade não me viu durante todo o dia, saiu para resolver os seus assuntos e eu fiquei cuidando de outras coisas como roupas de cama sujas, dispensa vazia, deixou recado escrito vou voltar tarde, te amo, um beijo e essas porcarias que o tempo transforma em prática protocolar. Desculpe, ainda não terminei a história com Carla, a despedida de Vânia, o bar do Bigode e de como vim parar neste lugar, não é mesmo?

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 9

A confissão da meretriz, dias atrás, de que o tempo passara rapidamente, o adeus de Vânia, a morte do poeta e o Bigode? Por onde andava aquele espanhol? Precisava falar com o seu contador, só o Arnaldo podia me dizer algo sobre o dono daquele lugar que estava sob os meus cuidados. E a mulher do cara? E meu romance, caramba, que estava largado debaixo da velha máquina de escrever? Tinha que terminar aquilo, nada podia fazer às três da manhã, portanto, entrei no Cabine, bebi um café, até pensei em comer aquela puta, mas fui para casa sentindo o frio da madrugada cortar a minha cara.
Na tarde seguinte, fui até o Arnaldo que tinha um escritório lá no Treme Treme, era um lugar pequeno com quatro assistentes mulheres, duas bem apanhadas, uma velhota de uns sessenta anos, a quarta sem possibilidade de qualquer comentário a seu respeito, me recebeu como sempre, cortês e, como sempre, dentro de um terno meio alaranjado.
- Salve, meu velho, que bons ventos o trazem?
- Salve, desculpe se vou direto ao assunto, tenho que passar pelo mercado quando sair daqui, por onde anda o Bigode?
Respirou fundo, puxou um cigarro, me ofereceu um café, acendeu o cigarro, olhou para bunda da velhota que estava em cima de uma escadinha colocando algumas pastas na prateleira, coçou a velha barba de rufião por fazer. Voltei a interpelá-lo:
- Porra, dá para você parar com esses puta cacoetes e me responder?
- Bem, ando cheio de trabalho e, por isso, não passei pela Luar do Sertão, acontece que o Bigode não vai voltar da Espanha, está enrolado com uma dona e as coisas que herdou da família são suficientes para ele viver; pediu para eu agilizar a papelada para a separação e, entre outras coisas, conversar com você sobre passar o ponto da lanchonete, o desejo dele é que você comprasse aquela espelunca. Olhei para a cara do Arnaldo, pensei no Zelão, olhei para a cara do Arnaldo, pensei em tantas coisas sem nexo que não valem a pena dizer e, por fim, disse:
- Eu não tenho a menor vontade de ser dono de lá, acho que o Zelão, sim, faça uma proposta para o Bigode, que eu falo com o Zelão. Arnaldo concordou e, antes de sair, perguntei:
- E a dona Matilde, como reagiu?
- Além do bigode, o teu chegado viajou com um tremendo par de chifres para a terra natal.
Em pouco tempo, estaria desempregado novamente. Passei pelo banco e, após alguns minutos na fila, descobri que meu saldo era suficiente para puxar o carro de São Paulo e ficar de bobeira, escrevendo o meu velho romance. Voltei para a lanchonete e contei a coisa toda para o Zelão, que se encheu de entusiasmo, nem sabia a proposta do Bigode, mas precisava falar com a mulher, guardou o avental na gaveta e foi embora. 
Era uma tarde cinza e fria no velho centrão, caía uma garoa incessante capaz de fazer as pessoas se colocarem na entrada da lanchonete para esperar que ela passasse, o lugar estava vazio naquela tarde de quinta-feira. A bucólica paisagem me inspirou a colocar na vitrola um disco de Maysa para servir de trilha sonora para aquela cena, também para marcar a despedida que se avizinhava. As pessoas que esperavam diante da porta olhavam para o vazio lá dentro, enquanto o canto passava por elas e ganhava as ruas, naquele instante eu era o velho dono da mercearia de minha infância, onde costumávamos roubar balas de goma, sozinho, atirado diante de ne me quite pas repetido uma, duas, três vezes, sentia a vida correr entre os ponteiros do relógio e como corria a vida sem ternura, sem afago, sem colo de mãe para fazer um dengo qualquer.
Ela desistiu de esperar que a fina garoa se dissipasse e entrou, sentando-se ao lado da janela, mesa 7, portava alguns papéis dentro de uma agenda, bolsa e um livro sobre literatura beat. Do bolso do casaco retirou o seu maço de Minister, uma caixa de fósforos, acendeu o cigarro soltando a fumaça sem se preocupar com nada. Pediu um chocolate pequeno e um pão de queijo, enquanto eu colocava sobre a mesa o cinzeiro. A pedida perfeita para o clima, mas em seu lugar eu substituiria o chocolate por um café com conhaque. Ficou por ali lendo seu livro, sem se tocar que a noite já se fazia presente, quando deu por si olhou para o relógio, pediu a conta e antes de pagar perguntou se servíamos feijoada aos sábados, “a melhor da cidade”, respondi, recebendo de presente um largo sorriso. Foi embora, assim como chegou, sem fazer alarde após algumas páginas, dois chocolates e um pão de queijo, deixou sobre a mesa, juntamente com a despesa, um pequeno recado escrito num guardanapo: AMO MAYSA, QUALQUER DIA EU VOLTO, BEIJO, não assinou o bilhete, mas era o tipo de mulher que podia me fazer feliz.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 8

- Porra, cara, e aí? - perguntou beijando meu rosto, seu nariz estava gelado, o rosto molhado pela garoa, ficou ecoando o “e aí” que ela me disse, enquanto eu olhava para os seus olhos.
- Tenho saudade de mim mesmo, saudade sob aparência de remorso, de tanto que não fui, saudade a esmo.
- O quê? Tá maluco? - perguntou.
- De repente, me veio este trecho de um poema do Drummond, acho que é assim que estou me sentindo hoje.
- Você estava no Oscarito?
- Acabo de sair de um filme do Truffaut que me deixou um pouco atordoado, ainda estou me recuperando, desculpe, vou até o Joaquim, tá afins? - topou sem pensar duas vezes, agarrou meu braço como se fôssemos namorados, enquanto caminhávamos até a Rua Augusta. O frio de abril ganhava requinte, enquanto andávamos em silêncio. Insatisfeita em ter apenas o meu braço, decidiu aquecer as mãos dentro do bolso do meu casaco.
- Também gostei desse filme do Truffaut.
- Não consigo entender os filmes de seu antigo amigo, o tal Godard, ele não transmite nada de forma simples.
- É verdade, o curioso é que eram grandes amigos e romperam feito Sartre e Camus.
- Esses franceses são umas grandes bichonas - falei e entramos no Joaquim. A bisteca do Gordo não era igual a do Sujinho, mas dava para o gasto, rachamos uma acompanhada de uma porção generosa de polenta frita. Ela partiu para a caipirinha de vodka e me acompanhou numa gelada. Parecia feliz em estar ali, entre malucos, poluindo sua roupa com a fumaça da carne e dos cigarros, saí do gelo após alguns segundos.
- E aí, o que cê me conta de novo? - olhou para o lado, abriu a bolsa tirando um maço de cigarros, o fósforo e os colocou sobre a mesa.
- Vou para Paris dentro de alguns dias, cansei disso tudo e a iminente derrota do meu candidato nessa eleição me motivou a puxar o carro.
- Vai largar seus pais por causa de uma eleição e partir para aquele lugar de maricas?
- Os coroas vão morar na chácara que minha avó deixou, minha mãe se aposentou o ano passado e meu pai em alguns dias também vai entrar nessa, vamos vender a casa, rachar a grana em três e adeus, eles acham uma boa eu sair fora, abandonar o partido, as discussões na faculdade, além disso, o Gouveia descolou uma vaga numa boa universidade para eu fazer meu doutorado.
- Caramba, é um oi e tchau então, quem é esse fulano, esse tal de Gouveia?
- Um grande amigo que você nem deve ser lembrar, afinal, você desapareceu, andei procurando por você pela biblioteca, ninguém sabia nada a seu respeito, queria te contar que o Guti bateu as botas após um assalto, foi uma coisa chocante. O que você tem feito?
- Bebemos algumas juntos no dia seguinte ao sarau na tua casa e você me vem com essa, que mundo maluco, pintou um bico de balconista numa lanchonete e sem me tocar já estou por lá faz um bom tempo ,como foi que aconteceu?
- Deram uma facada por algumas notas fajutas, sangrou feito animal no matadouro sem a ajuda de ninguém, o golpe o feriu de tal forma que nem conseguiu gritar, foi o que disse o escrivão de plantão, um cara metido a sabe tudo, saca? Gordo, careca, cachimbo na boca, o porco com certeza deve ter na sua gaveta umas revistas daquelas suecas imundas.
- Ele era um sujeito super bacana, escrevia bem pra caramba, faz muito tempo?
- Algum tempo. - respondeu cortando ao meio a bisteca sangrando que acabara de chegar, pediu para passar um pouco mais a sua parte e eu fiquei com a minha como estava.  
- Ele tinha família? E os textos como ficaram?
- Ele morava com uma irmã, numa casa enorme em Santana, posava de pobre, mas era cheio da grana com curso de Direito e tudo, deixou pronto um livro com todos os seus poemas que a irmã tola pensou em colocar no caixão, não fosse o Gouveia e ela teria feito isso, são poemas razoáveis, tem um falando de você, ele te descreve como o cara misterioso do sarau da granfina com narina de cadáver e uma meia dúzia sobre as minhas pernas e o tesão que ele tinha em me levar para a cama, queria me comer com chantili, é mole? Soltou uma grande gargalhada, puxou o canudinho e num tiro mandou toda a caipirinha pra dentro.
- Ao Morto. - disse erguendo seu copo de cerveja.
- Ao Morto. - respondi e num trago só bebemos todo o precioso líquido em nossos copos.
Comemos, bebemos, ela fumou todo o maço e antes de acender o último cigarro me disse que, depois daquele, iria embora. Não parecia que um dia tive vontade de ter aquela mulher como namorada, éramos amigos e sempre fomos, grandes amigos mesmo após tanto tempo sem nos encontrarmos, era como se esse tempo fosse de apenas um dia e não, anos. Tirou uma caneta do bolso, marcou qualquer coisa no guardanapo e me entregou.
 - Espero você para um último abraço, nesse endereço, tá certo? Vai rolar um bota fora, essa conta eu pago, pode ser?
- Não vejo problema desde que eu possa pagar a saideira, topas? Bebemos a caideira, rimos da cara de um Sartre de araque cantando uma jovem falando lhufas de filosofia existencialista e fomos embora. Coloquei-a num táxi, mas antes dei-lhe um beijo frio de esquimó e ela se perdeu subindo a Augusta. Dentro dos bolsos, as mãos. A cabeça suspensa. Dei as costas para a ladeira e desci. Algumas coisas precisam chegar ao fim, a própria vida necessita de um fim. Notei que ela não falava como antigamente, estava diferente, mais despojada, talvez o Gouveia fosse o responsável por tamanha transformação e, se não fosse o maldito acaso, nem saberia de sua ida para a França.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 7



Não demorou e ele partiu para o velho mundo, deixando Zelão e eu buscando entrosamento diante de um estádio repleto de seres famintos. Após um começo titubeante, aos poucos nos entrosamos, ele preparava o rango e eu cuidava das coisas no salão, passamos a fechar mais tarde entre as contas do que havíamos ganhado no dia, os produtos para a compra no dia seguinte, o contato com o fornecedor de bebidas e toda a papelada que volta e meia tínhamos que mandar para o contador; os outros funcionários, não sei se por inveja ou frescura mesmo, nem perceberam a ausência do Bigode, não possuíam comprometimento algum, se importavam apenas em receber em dia. Em pouco tempo, passamos a fechar a lanchonete às onze da noite, horário em que eu colocava as cadeiras sobre as mesas para lavar o piso, havia uma camaradagem entre os fregueses, tanto que a pedido de alguns passamos a deixar a lanchonete aberta até a uma da manhã às sextas, o dinheiro começou a entrar para a felicidade do Zelão, que reformava a sua casa fazia um tempão.
Se, por um lado, era desgastante trabalhar ali, também era gratificante pelo contato com as pessoas; em pouco tempo fui fazendo amigos e novamente largado pelo destino em outra direção. Vânia foi ficando esquecida num canto da memória, se enchendo de pó feito os papéis do romance que eu escrevia, ao menos os papéis eu podia tocar, ela, em compensação, vagava pelo esquecimento e nem mesmo nossas conversas sobre literatura serviam para refrescar a saudade. Talvez por isso ou por aquilo, como dizia o velho poeta Das Baixinhas, larguei mão daquele amor voltando aos braços das mulheres mundanas do pedaço, baixava as portas do lugar para percorrer quase todas as noites as casas da Bento Freitas e da Major Sertório, tá certo que era uma coisa vazia, embora repleta de peitos, bundas e coisas peludas ou depiladas, era divertido não pensar em nada, futuro ou passado, mas a idade, que já pesava sobre a minha cabeça acompanhada da vida conjugal feliz do Zelão e dos outros funcionários, me enchia de amargura acada metida com aquelas fulanas, no fin fon fin elas gemiam e eu não pensava em nada, claro que algumas não ajudavam, tamanho o buraco largo que havia se transformado a coisa entre as suas pernas, porém, na maioria das vezes, a minha cabeça estava longe, pagar por sexo realmente é foda mal dada, nada de beijo na boca e, porra, canceriano necessita mesmo é de abraço. Acordei algumas vezes no cafofo ao lado de figuras que, se não fosse o fato de deus ter coisas mais importantes para se preocupar, diria pelo amor de deus, cada paranga!, uma delas um dia me falou sem pudor nenhum “tem quatro anos que você vem me comendo”. 
Decidi dar um tempo, caspita, o Bigode já estava fora fazia um bom tempo, que grande inútil eu era em pagar para aquela vagabunda com a xavasca larga pra chuchu, achei melhor não fazer as contas de quanto havia pagado para ela durante todo esse tempo e a desgraçada nem assim me dava um beijo, um simples beijinho. Troquei o puteiro pelo cinema, alguns filmes bons estavam em cartaz e os filmes que gosto sempre foram ideais para assistir tranquilo, sem companhia, afinal, sempre rola um papo sobre a projeção no café ao lado com alguma pessoa desconhecida; acompanhei vários filmes, principalmente os do bom Truffaut em uma mostra que rolou lá no Oscarito, achei Os incompreendidos o melhor de todos, estranhamente senti um pouco de minha vida refletida naquela película, foi após a sua exibição, numa noite fria de outono,  que enquanto caminhava, escutei alguém gritar meu nome, do outro lado da praça, e assim voltei os meus olhos e, de repente, saquei Vânia acenando frenética, atravessou a rua na boa e me deu um forte abraço digno de gente que se curte, digno de amizade, digno de puta tesão mesmo.