segunda-feira, 11 de julho de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 8

- Porra, cara, e aí? - perguntou beijando meu rosto, seu nariz estava gelado, o rosto molhado pela garoa, ficou ecoando o “e aí” que ela me disse, enquanto eu olhava para os seus olhos.
- Tenho saudade de mim mesmo, saudade sob aparência de remorso, de tanto que não fui, saudade a esmo.
- O quê? Tá maluco? - perguntou.
- De repente, me veio este trecho de um poema do Drummond, acho que é assim que estou me sentindo hoje.
- Você estava no Oscarito?
- Acabo de sair de um filme do Truffaut que me deixou um pouco atordoado, ainda estou me recuperando, desculpe, vou até o Joaquim, tá afins? - topou sem pensar duas vezes, agarrou meu braço como se fôssemos namorados, enquanto caminhávamos até a Rua Augusta. O frio de abril ganhava requinte, enquanto andávamos em silêncio. Insatisfeita em ter apenas o meu braço, decidiu aquecer as mãos dentro do bolso do meu casaco.
- Também gostei desse filme do Truffaut.
- Não consigo entender os filmes de seu antigo amigo, o tal Godard, ele não transmite nada de forma simples.
- É verdade, o curioso é que eram grandes amigos e romperam feito Sartre e Camus.
- Esses franceses são umas grandes bichonas - falei e entramos no Joaquim. A bisteca do Gordo não era igual a do Sujinho, mas dava para o gasto, rachamos uma acompanhada de uma porção generosa de polenta frita. Ela partiu para a caipirinha de vodka e me acompanhou numa gelada. Parecia feliz em estar ali, entre malucos, poluindo sua roupa com a fumaça da carne e dos cigarros, saí do gelo após alguns segundos.
- E aí, o que cê me conta de novo? - olhou para o lado, abriu a bolsa tirando um maço de cigarros, o fósforo e os colocou sobre a mesa.
- Vou para Paris dentro de alguns dias, cansei disso tudo e a iminente derrota do meu candidato nessa eleição me motivou a puxar o carro.
- Vai largar seus pais por causa de uma eleição e partir para aquele lugar de maricas?
- Os coroas vão morar na chácara que minha avó deixou, minha mãe se aposentou o ano passado e meu pai em alguns dias também vai entrar nessa, vamos vender a casa, rachar a grana em três e adeus, eles acham uma boa eu sair fora, abandonar o partido, as discussões na faculdade, além disso, o Gouveia descolou uma vaga numa boa universidade para eu fazer meu doutorado.
- Caramba, é um oi e tchau então, quem é esse fulano, esse tal de Gouveia?
- Um grande amigo que você nem deve ser lembrar, afinal, você desapareceu, andei procurando por você pela biblioteca, ninguém sabia nada a seu respeito, queria te contar que o Guti bateu as botas após um assalto, foi uma coisa chocante. O que você tem feito?
- Bebemos algumas juntos no dia seguinte ao sarau na tua casa e você me vem com essa, que mundo maluco, pintou um bico de balconista numa lanchonete e sem me tocar já estou por lá faz um bom tempo ,como foi que aconteceu?
- Deram uma facada por algumas notas fajutas, sangrou feito animal no matadouro sem a ajuda de ninguém, o golpe o feriu de tal forma que nem conseguiu gritar, foi o que disse o escrivão de plantão, um cara metido a sabe tudo, saca? Gordo, careca, cachimbo na boca, o porco com certeza deve ter na sua gaveta umas revistas daquelas suecas imundas.
- Ele era um sujeito super bacana, escrevia bem pra caramba, faz muito tempo?
- Algum tempo. - respondeu cortando ao meio a bisteca sangrando que acabara de chegar, pediu para passar um pouco mais a sua parte e eu fiquei com a minha como estava.  
- Ele tinha família? E os textos como ficaram?
- Ele morava com uma irmã, numa casa enorme em Santana, posava de pobre, mas era cheio da grana com curso de Direito e tudo, deixou pronto um livro com todos os seus poemas que a irmã tola pensou em colocar no caixão, não fosse o Gouveia e ela teria feito isso, são poemas razoáveis, tem um falando de você, ele te descreve como o cara misterioso do sarau da granfina com narina de cadáver e uma meia dúzia sobre as minhas pernas e o tesão que ele tinha em me levar para a cama, queria me comer com chantili, é mole? Soltou uma grande gargalhada, puxou o canudinho e num tiro mandou toda a caipirinha pra dentro.
- Ao Morto. - disse erguendo seu copo de cerveja.
- Ao Morto. - respondi e num trago só bebemos todo o precioso líquido em nossos copos.
Comemos, bebemos, ela fumou todo o maço e antes de acender o último cigarro me disse que, depois daquele, iria embora. Não parecia que um dia tive vontade de ter aquela mulher como namorada, éramos amigos e sempre fomos, grandes amigos mesmo após tanto tempo sem nos encontrarmos, era como se esse tempo fosse de apenas um dia e não, anos. Tirou uma caneta do bolso, marcou qualquer coisa no guardanapo e me entregou.
 - Espero você para um último abraço, nesse endereço, tá certo? Vai rolar um bota fora, essa conta eu pago, pode ser?
- Não vejo problema desde que eu possa pagar a saideira, topas? Bebemos a caideira, rimos da cara de um Sartre de araque cantando uma jovem falando lhufas de filosofia existencialista e fomos embora. Coloquei-a num táxi, mas antes dei-lhe um beijo frio de esquimó e ela se perdeu subindo a Augusta. Dentro dos bolsos, as mãos. A cabeça suspensa. Dei as costas para a ladeira e desci. Algumas coisas precisam chegar ao fim, a própria vida necessita de um fim. Notei que ela não falava como antigamente, estava diferente, mais despojada, talvez o Gouveia fosse o responsável por tamanha transformação e, se não fosse o maldito acaso, nem saberia de sua ida para a França.

Um comentário:

  1. Está ficando mais coloquial, sem perder o estilo. Continua interessante!

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