quarta-feira, 19 de junho de 2013

Juízo final - 3

Os acordes distorcidos das guitarras, misturadas ao peso da bateria mais a voz da cantora, enchiam o ambiente de uma energia descomunal, puxava aquele papel repleto de tranqueiras jogando para o alto a fumaça, todos ao redor repetiam este movimento, espaço pequeno para fumantes, observava aqueles rostos novos, as embalagens diversas de um fumo bem funesto, nunca foi de tragar, sempre gostou de tabaco, sentia-se bem em morder o charuto enquanto fumava, misturava esse resto na boca com uma bebida forte, um uísque ou uma boa cachaça, era um mal necessário, apenas viajava. Quando saiu para o grande salão cabeças se agitavam, lembrou-se então de Anabel, do Morro Santo Antonio em Porto Alegre, das suas calças jeans sempre gastas, seus tênis, seu sorriso, ela que preparava o rango para todos, ela que fez tremer o mequetrefe, por onde andaria aquela mulher? Estranho como passa rápido o tempo, ele já não era mais o doido dos bótons coloridos que vendia pela rua, quase não tinha mais fígado embora, isso não tenha nada a ver agora entende? Ela era a gaúcha perfeita por não ser de lá, era do mundo assim como ele, viviam completamente fora de fuso, era o  momento de agir, lutar pelo voto mas, os dois e alguns estavam ali como que cravados na década de sessenta. Ele foi para lá depois que terminou o colegial, queria ir para o sul, depois para o norte, pegou um busão e se picou para começar nova história, os pais sempre o acharam um doido, raspou a grana da poupança, meteu a mochila nas costas, e sem olhar para trás beijou os velhos, o irmão, brincou com o cachorro e se foi. Ela se chamava Violeta, era de uma cidadezinha no Uruguai, acontece que o país vivia na corda bamba, não podia se expressar bem por lá, deseja estudar filosofia, os velhos decidiram bancar a sua vida no Rio Grande, adotou Anabel depois de comer um pão de mel desta marca. A grana aos poucos foi ficando mirrada, sabia mexer com artesanato, comprou algumas canetas e papéis coloridos começando uma variedade de desenhos de astros da música e da literatura, achou num canto um cara que vendia pequenas embalagens redondas transparentes, colava os desenhos ali e saia vendendo, a cidade propiciava uma boa cena cultural, passou a frequentar lugares de todo tipo, não vivia bem por outro lado, não tinha motivos para chorar, precisava se desligar da rotina da casa, tinha que se virar, assim começava sua juventude, não tardou em conhecer os doidos locais, ficava perambulando pela calçada do Opinião onde vendia com mais facilidade a arte que produzia, foi ali que conheceu Mercedez esposa de Farias, dona de um quartinho que acabou alugando para ele, nada luxuoso, mas com cama, um pequeno banheiro, fez amizade com Alberto que sempre andava chapado, qualidade que não deixava que se esquecesse de nada, foi justamente ele que numa noite de garoa, um frio que doía até os ossos o alçou para uma festa, ambiente quente, gente nova, traga apenas papel para uns desenhos disse o barbudo Alberto. Pé ante pé foram flanando pelas ruas até um casebre, habitação bem distinta das casas que conhecia até então.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Juízo final - 2

Um sorriso suave virou aquele canto de boca, colocou para fora os dentes dele, também aqueles que vieram depois, através do sindicato dos químicos, podia sorrir mas não podia comer sardinha ou tainha, algumas espinhas escapam pela dentadura, param no gogó e babau, por dentro sentia a felicidade de não ter um puto no bolso, apenas e apenas apenas, você deve achar estranho isso, acontece que não é, ele se lembrou da mãe de um amigo que andava pelas ruas corcunda, sinistra, parece que ela ficou assim quando um cara pegou ela de jeito sei lá, meio que de quatro, meteu as mãos no peito dela e puxou, ela já era peituda, tinha dois inclusive, naquela posição gozou firme, o cara morreu e por motivo de luto ela ficou assim, o tempo passa corcunda como ela, ficou velha, descia a ladeira ontem, parecia um corvo, toda preto, óculos escuros, vixi nossa ave maria!  Voltando ao lance dos dentes, ele queria deixar um de fora, queria tocar trompete como Chet, chiti, era isso a sua embocadura, ele não era muito fácil pode se dizer, quando entrou na condução passou sem olhar para a cara do trocador, depois viu que era o Adão, estudou com ele na quinta série do ginásio, o primeiro homem, depois do homem que botou ele naquela solidão é claro, foi da costela dele que ela chegou, foda com o perdão do termo é que não tem como engessar uma costela quando ela quebra, é preciso esperar até que ela se restaure por outro lado, como é bom comer uma costela, ele adorava isso embora, não pudesse morder a do porco, tinha aquela coisa que disse lá atrás dos mordedores fajutos. Grande Adão deve ter olhado para ele daquele jeito, o metido, essas coisas todas, ele contudo se redimiu, não queria morrer com o fulano, o primeiro de todos sentindo qualquer raiva dele, foi até lá com a desculpa que precisava trocar uma note de vinte, disse olá para o cara que trocou a cédula e sorriu, assim nos redimimos de todos os maus de uma forma ou de outra. Ele voltava de uma noitada na Augusta, tinha saído para caminhar depois que a filha ligou dizendo que estava grávida, ela tinha que dar e acabou dando para um desses caras que ele não daria se fosse ela e, como não era teve que engolir, linda era ela, é, sempre será. Uma banda ia tocar naquela rua, ele óbvio não era mais jovem mas, ainda tinha lenha para queimar, gostava de coisas atuais, foi para a estrada com aquela notícia ecoando na cabeça, depois de uma Stella ficou de boa como dizia a rapaziada, foi descendo tranqüilo, parou para comprar um charuto, acendeu ali mesmo, continuou até o beco, passou por ele, sofreu a revista, pegou a comanda, entrou na fita e escutou Jeniffer Lo. Ela cantava de forma estridente, os instrumentos enlouqueciam o público, ele era o rosto na multidão, se sentiu um imbecil por ter pego apenas um charuto, foi ao bar pegar uma Seleta, trombou uns caras, pediu um cigarro, foi para o aquário dar umas baforadas.