quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Moinhos


Todo alvorecer tem aroma de livro novo, aquele que seus olhos ansiosos desejam percorrer cada página, saborear como se faz com a mais tenra fruta, apesar de todos os percalços, o ressurgimento do dia, instante em que as agruras noturnas se dissipam, porta sempre um lirismo que na correria cotidiana nem percebemos.
Durante a noite se entupiu de analgésicos, precisava de alguma maneira encontrar certo alívio, a embarcação balançava causando dores insuportáveis, diversas vezes despertou, não conseguia ver o rosto do timoneiro, não era homem do mar mas, da terra, nela tinha conseguido tudo na vida, eram águas turvas, as outras pessoas não demonstravam qualquer alegria, eram seres resignados, quantas conquistas sobre o seu cavalo, não podia aceitar aquilo, observou o condutor da nau reconhecendo Caronte, sacou a sua espada, exigiu que retornasse ao porto, queria ver gente, nada de despedida, queria abraçar o seu fiel amigo, a face cruel daquele indivíduo que só conduz para frente e, não admite retroceder, se levantou, trôpego e com toda a bravura que lhe restava, partiu para cima mas, antes que se aproximasse daquele ser soturno apagou.
Despertou do pesadelo com mão de Dulcinéia em seu rosto, a mais bela de todas as mulheres diante de seus olhos, em meio aos delírios de febre ela o conduziu ao doutor, entre pares tão rotos quanto ele, apenas esperava que algo acontecesse, mergulhou nas aventuras do cavaleiro de triste figura, a luta contra os moinhos era tão complicada quanto respirar naquele instante.
Como um guarda Belo, o homem de branco seguia o roteiro de seu turno, flanava por olhares carregados de agonia, com o tempo os murmúrios de dor não incomodam tanto os ouvidos, o olhar torna-se frio, no entanto, naquele início de tarde, observou sobre a maca um indivíduo com a cabeça dentro de um livro,  se aproximou, estabeleceu um diálogo com a pessoa, entre comentários, algumas risadas, que o paciente não podia corresponder, o rosto rubro era a tentativa de realizar algo que era a sua marca registrada, o sorriso e a ironia, percebeu que havia algo de sério, puxou o prontuário, estudou cada radiografia, chamou um enfermeiro e ordenou que levassem o paciente para o centro cirúrgico.     
A tarde, que bronzeia o corpo do dia para o passeio sob um céu de estrelas, seguiu para ele em sono profundo, adormecer é não seguir o giro dos ponteiros, ali, no vazio, entregue o corpo ao trabalho dos homens, ter habitado a terra não possuía significado nenhum. Quando, enfim, abriu os olhos, o branco não era dessa tosca percepção que pregam tantas religiões,  quarto de hospital, aroma tétrico, a boca não salivava por um cigarro, que ele mama, mas, por uma coca-cola, que ele odeia, diante dele não havia Dulcinéia, só o amigo de horas atrás, já sem jaleco, que balbuciou em seu ouvido:

- Não tente falar, todo procedimento ainda é recente, salve  Dom Quixote.