segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 14

No domingo decidi ir ver como estava a velha casa que eu tinha posto à venda, o telefone da imobiliária só chamava fazia um tempão. Quando cheguei ao lugar, para a minha grande surpresa, uma família estava morando lá, perguntei de onde eram e as chaves e, porra, fiquei puto com tudo aquilo, bando de aproveitadores, calhordas.
- Estamos morando aqui faz tempo e já ganhamos a ação de usucapião, o senhor quem é?
- Eu sou o dono desta espelunca e que treco é esse de usucapião?
- Nós ocupamos o lugar, fizemos melhorias e o Juiz nos entregou a propriedade.
- Tinha uma caixa com documentos e fotografias, vocês guardaram isso pelo menos?
 - Claro, sabemos o que é preservar a memória.
Entrei na casa e, realmente, eles tinham feito grandes mudanças no local, meu quarto já não existia, muito menos o de minha mãe, a casa estava mais agradável, chão polido, paredes pintadas, a mulher, que se chamava Dita, pediu para que eu me sentasse e foi buscar a velha caixa.
Em minha memória aquela caixa era enorme, parecia tão pesada, mas ela me entregou sem grande esforço, abri o pequeno baú para tocar o meu passado, os documentos de minha mãe, os meus, as fotografias, parcas imagens que contavam a minha história, puxa vida, como eu fui relaxado com coisas tão importantes, como a minha falta de ambição tinha me levado a perder a casa de minha mãe e, por pouco, não perco as raras imagens do passado. Dita estava preparando o almoço, o aroma de sua comida era um convite generoso para um domingo no antigo lar, almocei com ela e seus filhos, rimos de coisas banais enquanto falava de minha infância naquela casa, depois peguei a minha caixa e fui embora. Ela perguntou o que eu iria fazer, respondi que não tinha a menor ideia e que ela ficasse tranquila.
O bairro não era mais o mesmo, as vendas onde comprávamos arroz, óleo, leite, café, pão tinham deixado de existir, os vizinhos se mudaram e suas casas estavam muradas com grades sobre o concreto ou cacos de vidro, o velho campinho virou posto de saúde e a praça, terminal de ônibus. O mês estava indo embora e com ele minha vida ganharia novo ritmo, nada de pessimismo, uma coisa de cada vez, foi o que pensei atravessando o busão, quando me sentei no final do veículo, me despedi daquela paisagem e percebi que ao menos o abacateiro estava no lugar.
Segundo dia da semana, Carmela finalmente apareceu, pediu uma cerveja para o Zelão, enquanto, ocupado, recebia a conta do velho Gariba, fui até o balcão e perguntei:
 - E, então, tudo bem?
- Vim saber se você ainda pretende ir comigo? - seus pais tinham uma pensão numa cidade do interior, os dois estavam mortos e o caseiro que cuidava do lugar estava doente e iria voltar para o sul, pelo menos disso me lembrava.
- Não ganho um beijo, não mereço perdão? - me deu um beijo e me senti melhor.
- Quando você vai pra lá?
- Na segunda quinzena do mês que vem.
- E aí, Zelão, dá para contratar alguém até lá?
- Com certeza.
- Vamos passear pelo centro, comer alguma coisa?
- Não foi o que combinamos? - o que falei ou combinei com Carmela não me lembrava, não me lembro até hoje e sinto uma tremenda vergonha de perguntar. A noite estava fresca e, então, saímos como dois namorados, éramos dois namorados e que sensação boa segurar a mão dela enquanto caminhávamos.
- Estamos namorando ou algo do tipo ou você quer namorar comigo? - perguntei.
- Faz um tempão que não sei o que é namorar, às vezes me pergunto o que é o amor.
- O que é o amor? Aqueles casais que vivem juntos por toda a vida sabem o que é o amor?
- Talvez o grande barato esteja em não ter razão de ser. - disse ela por fim e caminhamos alguns metros em silêncio. Propus uma carne, ela queria comer peixe, então decidimos comer no Caranguejo que ficava na Sete de Abril.
- Como eram seus pais?
- Um pouco fechados, quase não se falavam. Meu pai era calado e minha mãe solta, alegre, desvairada, adorava dançar e foi ela que me despachou para estudar aqui em São Paulo, se dependesse de meu pai teria ficado com eles, talvez até tivesse morrido com eles, depois da morte dele, ela se calou, entrou em uma grande depressão e acabou morrendo, e os seus?
- Não conheci o meu pai, pelo menos não me lembro dele e a minha mãe morreu faz um bom tempo. Outro dia fui ver como estava a minha antiga casa onde moramos e lá resgatei parte de minha história, qualquer dia eu te mostro. - chegamos ao Caranguejo e por ali ficamos até umas dez da noite, descemos para a Bandeira, onde ela pegaria o ônibus para casa. Enquanto esperávamos o coletivo, ela me deu um grande beijo e a zona sul ficou para depois, bem depois, no dia seguinte, entramos num hotelzinho e finalmente senti o amor como todo indivíduo deveria sentir, verdadeiro, sem frescura, totalmente louco, desvairado, sem pudores.
Pela manhã me acordou sorrindo, “onde será o nosso café da manhã?” - perguntou. Sete horas e qualquer coisa da manhã e levei-a para o desjejum na Padaria Palma de Ouro. Essa coisa de se estar bem demora até a chateação chegar e, depois de alimentados, ela me veio com tremendo papo furado, coisa de gente besta preocupada com formalidades e aparências.
- Não vamos juntos, tá certo? Quero preparar o seu espaço por lá, uns quinze dias depois você chega, quero evitar comentários, todos sabem que não sou casada e é como se meus pais estivessem ainda morando na pensão, não me sinto bem, entende?
- Não compreendo, mas respeito, com quantos homens você já foi para lá?
- Porra, você não entende, quero manter por algum tempo as aparências.
- As aparências de que não está tendo um caso com o caseiro, já estava achando felicidade demais, vou pagar a conta, se não o Zelão me mata, hoje é dia de feijoada.
Não podia reclamar, afinal não queria ser funcionário do Zelão, a casa que pensava ser minha estava ocupada por outra pessoa, dos males o menor, manter certa distância e terminar a merda do livro, era isso que precisava fazer quando estivesse morando na pensão. Descemos em silêncio para a Bandeira, mas, aos poucos, voltamos a conversar, ela me falou o quanto era pequena a cidade e que seus clientes eram estudantes e trabalhadores de uma fábrica da cidade ao lado e que todos os finais de semana seriam sempre nossos.

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