segunda-feira, 30 de maio de 2011

O cachorrinho riu para a moça mais linda da cidade - 2

Um pé na bunda da indústria, onde por vinte anos trabalhei de segunda a sexta entre tarefas burocráticas, rendeu uma boa grana para mandar tudo às favas. Meu trampo era tranquilo, afinal, empilhava toda a papelada, durante a semana, nas caixas dos diversos departamentos e, na sexta, ficava o dia todo arquivando; de repente, tudo começou a mudar para o meu lado quando a economia começou a degringolar, inflação altíssima e a queda no consumo fizeram com que os caras não pensassem duas vezes, primeiro me botaram em quarentena, quer dizer, em férias, e quando retornei alguns pés já estavam prontos para chutar o meu fundilho, antes disso, é claro, me ofereceram um café e me explicaram toda a coisa de como funciona a máquina operária e coisa e tal, fui posto em liberdade e com alguns caraminguás para gastar; ao mesmo tempo em que me despedia daquele lugar, sentia um peso sair de meus ombros, junto com essas sensações um sentimento de angústia dava certo tom, afinal, foi esse trabalho, do qual saltava fora, a minha redenção por ter aparecido logo após a velha ter batido as botas, embora tenham me chutado, não podia deixar de sentir certa gratidão por eles, que grande ironia.
Minha querida mamãe zarpou de repente, fruto de dores que escondia para não ter que faltar ao seu trabalho de doméstica e me deixar na mão, povereta acabou me deixando assim mesmo com um vazio que preenchi entre bebedeiras e moças do baixo meretrício. Amarguei alguns dias abraçado ao diabo, acreditando ser esta a solução para uma vida aparentemente banal; aos poucos, a grana da poupança foi acabando e as senhoras meretrizes me abandonaram sem uma dose de Pitu, me mandando literalmente para aquele lugar, saca? O tal inferno? Numa manhã, passeando pela Rua Direita por meio de um homem-placa cheguei ao trabalho burocrático do qual estava livre após tantos anos.
Solto, sem eira nem beira, passei a perambular pelas ruas da cidade; sempre que possível dava uma passeada pelo centro, onde o cinema era mais barato e rolavam atrações artísticas de graça. Era chato viver sem a velha, por isso botei a casa à venda e aluguei um quartinho na boca do lixo, me tornando livre daqueles ônibus sempre apinhados. A comida era boa e barata, adorava atravessar aquelas galerias, olhar para as pessoas e seguir o fluxo da rua diante do Mappin em meio a uma grande multidão. Numa dessas andanças, entrei numa biblioteca, tornei-me sócio e passei a ler de tudo, em pouco tempo levava alguns livros para o meu cantinho e só saía de lá após devorar todos eles. Com essa fixação pela literatura, deixei de prestar atenção nas pessoas, eu, que já era um ser anônimo, me transformei num ermitão dentro da grande cidade, carregando livros de um lado para o outro, depois da preocupação com a velha, a leitura passou a ser o meu novo refúgio.
Acontece que o acaso é elemento presente na história de qualquer um de nós e, assim, enquanto não chego ao bar da estudantada, deslizo para um fim de tarde onde me encontrava percorrendo o grande salão da biblioteca com a ideia fixa de escrever um romance, depois de tanto ler nada mais justo do que despejar tinta pelo papel, não sabia bem por onde começar, só sabia que finalmente tinha um objetivo traçado, um plano para seguir. Desatento, criando personagens, tropecei em Vânia ou ela topou comigo, na verdade, tropeçamos um no outro, tentei desviar e acabei caindo, nada senti com a queda, apenas enquanto me levantava percebi seus olhos e, súbito, aquele frio na barriga, aquela coisa de medo ou de expectativa de que algo poderia acontecer, um par de olhos mansos, jabuticaba madura e um sorriso, ah, que sorriso ela tinha! Como num flash estava completamente feliz, como um cidadão que não tinha onde cair vivo, sim, cair vivo, uma vez e única vez morto podemos cair em qualquer lugar, não é mesmo? Bem, como podia me sentir feliz diante da pasmaceira que era a minha vida? Felicidade é coisa de gente besta, me recordo que a primeira gorjeta que recebi fazendo carreto na feira representou um momento único de felicidade, que logo derreteu entre lambidas em um sorvete de creme; a presença de Vânia era o primeiro sentimento de felicidade da idade adulta transfigurada por livros, transfigurada pelo desejo de ser alguém, quem sabe, num lance do acaso, um escritor?  

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